quinta-feira, 14 de abril de 2011

Sebo


Sebo

Conto do livro que estou lendo "As mentiras que os homens contam", de Luís Fernando Veríssimo.


O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o "plim" no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.
- Comprei um livro seu não faz muito.
Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...
Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.
- Você leu meu livro? - ele perguntou.
- Li!
Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores novos.
- Não leu - disse ele.
- Li. Li!
Essa obscena compulsão de ser amado.
- Leu todo?
- Todo.
Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.
Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:
- Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:
- Uma beleza!
- Onde é que ele está?
Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante. Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros. Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Me ocupo tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.

Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:
- Que livro! Puxa!
Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
- O último. Finalmente.
- O quê?
Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?
No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a idéia de descobrirem seu cacófato.
- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.
Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
- Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer.
Mas ele me pegou e me estrangulou. Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites.
Enfim.
É o que dá freqüentar sebos.

Nota:
1º-
Cuidado com o que lê.
2º- Cuidado quando abrir a porta de casa pra um estranho.
3º- Cuidado ao mentir, às vezes o melhor é falar a verdade, doa a quem doer.
4º-
Cuidado pra não cometer um cacófato. Inclusive vou verificar se há alguma cacofonia no MH,e se houver já sabem, receberão uma "visitinha" minha na casa de vocês...

[Mente Hiperativa]

2 comentários:

  1. Vou ficar mais atendo quando ler os seus textos. Qualquer cacófato descoberto, me mudo para o Japão, prefiro enfrentar a fúria dos terremotos.
    Abraço

    ResponderExcluir
  2. As coincidências não acabam nunca! Esses dias vc falou sobre audiobook, e eu por curiosidade resolvi experimentar, e advinha que livro eu baixei?? Esse mesmo "As mentiras que os homens contam", ouvi hoje..rs Gostei bastante por sinal, algumas das crônicas já havia lido por aí, mas achei a narração muita boa..
    Ah, eu ouvi enquanto desenhava (sugestão).
    beijos..

    ResponderExcluir

Deixe sua opinião: