sábado, 25 de outubro de 2014

A salvo da loucura



A salvo da loucura

Andava sempre atenta, olhando para os lados discretamente, parava num café e depois entrava numa loja, sem jamais repetir os lugares visitados. Procurava ser discreta nas atitudes e comentários, não queria chamar atenção, tampouco causar lembranças às pessoas. Reservava os óculos escuros apenas para os ambientes externos, pois aprendeu com o tempo que eles chamam atenção ao invés de cumprir seu propósito de disfarce.

Vivia perseguida pela sombra do medo, aterrorizada com a possibilidade de ser encontrada a qualquer instante. Colhia dados o tempo todo e os anotava pra criar sua nova história, retalhos de vivências alheias que via e ouvia pelo mundo a fora, precisava de uma identidade, de um passado ainda que fictício para usar nos diálogos essenciais e estritamente inevitáveis.

Em casa evitava olhar-se no espelho, não queria lembrar quem era de fato. A TV era sua companhia constante, até quando saía a mantinha ligada na opção mute. Silenciava o passado, construía lentamente um novo presente e não tinha qualquer certeza acerca do futuro.

Habitava a penumbra, andando cuidadosamente, pois qualquer pisada em falso poderia lhe custar a vida. Temia ser encontrada, caso o fosse teria que ajustar as contas com seu sórdido passado, aquele que evitava visitar até em pensamento.

Um belo dia foi dormir tarde da noite, exausta e pra sua surpresa e pânico acordou num hospício. Foi então que se deu conta de que seus últimos anos se passaram numa fuga de si mesma, presa numa clínica a enganar-se o tempo todo com artifícios torpes, disfarces tão loucos quanto a própria imagem de si mesma.

Descobriu de imediato, como quem encontra uma caixa antiga de fotos e se reconhece, que estava vivendo um incrível conto de fadas, com personagens, lugares e histórias que se repetiam diariamente, porém com outros nomes dados por ela. A lucidez, ainda que tardiamente, caiu em seu colo como uma bomba prestes a explodir.

E agora, o que faria da vida? Sem família, sem casa, sem trabalho, sem renda e COM lucidez? De que adiantava situar-se na realidade se nem ao menos poderia usufruir desse mundo feito apenas para os outros? Foi então que logo após melhorar da loucura entrou numa profunda depressão. E seus personagens, disfarces, fugas e fantasias caíram todos por terra, tornando-a uma pessoa apática, sedimentada numa cama como o velho leito de um rio.

Passou a não mais pronunciar as loucuras de antes, deixou de lado as perucas e lenços, os batons e óculos escuros. A vida trocou a fantasia pela morbidez de uma triste realidade, agora jaz numa cama olhando infinitamente para o teto branco e mofado daquele quarto nos fundos da clínica psiquiátrica. Sente saudade do tempo em que a loucura coloria sua vida com alguma esperança e, porque não dizer, felicidade. Mas não comenta isso com ninguém, não quer parecer uma louca.

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Isso de amar ainda vai acabar ferindo alguém


Isso de amar ainda vai acabar ferindo alguém

Inventou-se que a felicidade só existe a dois e assim acabaram com meu doce culto à melancolia e solidão. Fui arrancado do hábito da leitura e convocado a buscar esse tal amor sob a promessa de que ele me conduziria à eterna felicidade.

Em seguida, me disseram que não poderia ficar parado esperando o amor cair do céu, teria que sair de casa e ir à caça, ainda por cima me arranjaram esse trabalho. Bem que podia ser mais simples, mas aceitei e fui comprar pão. Com sorte poderia encontrá-lo na fila do caixa ou na prateleira de produtos em promoção.

Segui a risca o que me foi dito, corri atrás e depois de meia maratona acabei encontrando pelo caminho diversos sentimentos, desilusões, vivi relacionamentos, simbioses e até mentiras, colecionei troféus e derrotas. Por fim, vencido pelas circunstâncias, acabei voltando para a segurança dos livros.

No fim das contas sempre soube que essa história de amor acabaria me ferindo. De volta à solidão literária, agora repouso na cômoda posição de quem não precisa lidar com o mundo lá fora. Quanto à eterna felicidade, deixo aos que encontraram o amor; estes que embora feridos, sentem-se completos.

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Prisão



Prisão 

Eu te amo como quem ama um passarinho morto e com cuidado te manipulo, como se por acaso fosse capaz de te machucar. Mas como machucaria algo que está morto e que talvez nunca tenha tido vida?

Toda vez que quero saber como você está eu te alcanço naquela caixa de ossos lá no alto, te desembrulho com cuidado e te acaricio. Sei que é mórbido, sei que é absurdo, mas conforta-me o fato de você estar ali, morto.

Às vezes sinto vontade de abrir a caixa e te ver voando pra bem longe, carregando contigo esse meu prazer doentio e me libertando dessa penitência diária. Mas você não passa de um passarinho morto, tão morto que nem pode voar.

Por isso, estaremos eternamente presos um ao outro.

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Pedido de ajuda



Pedido de ajuda 

A dor castiga o corpo; o remorso faz doer a alma. E de repente aquele ato impensado, impulsivo, torna-se a desculpa perfeita pra nutrir o sofrimento que já não reconhece motivos, apenas se mantém por inércia. A soma de incalculáveis deslizes permite à dor multiplicar-se diariamente, consumindo pouco a pouco a carne, degenerando as ideias pra que estas alimentem o sofrimento.

Nesse ciclo vicioso o ser vai afundando em uma lástima de vida, sem luz, sem cores, jogando-se nos braços da derrota e assimilando toda a negatividade que o cerca. Sem amor o triunfo lhe parece um calvário inglório, sem ajuda a luta torna-se um desafio insustentável. E é nesse momento que um olhar sensível e treinado é capaz de provocar uma verdadeira mudança interior.

Por isso, preste atenção à miséria humana mascarada de apatia, ouça os gritos ao seu redor, reconheça o desamparo e a dor ocultos nas aparências ou mesmo escancarados aos olhos de quem quiser ver. Quem se entrega à dor pode não estar enxergando oportunidade de sair dela, muitas vezes não se trata de uma escolha. Estenda sua mão poderosa ao invés de julgar, lembre-se: você também erra...

[Mente Hiperativa]

domingo, 11 de maio de 2014

Pequeno dicionário do amor


Pequeno dicionário do amor

Distância que une,
saudade que sufoca
mas sossega
com um sorriso teu.

Angústia que consome,
e se esconde
por trás da fumaça.
E logo passa ao te ver.

No meu pequeno dicionário
o amor não tem palavras
pra traduzir o que quero dizer.

Pois qualquer um que nos olha
consegue facilmente perceber:
o amor sou eu e você.

[Mente Hiperativa]

domingo, 27 de abril de 2014

Sonho de (a)mar


Sonho de (a)mar 

As melhores noites de sono são aquelas em que o tempo está frio; os melhores sonhos são os que se passam como uma experiência real.

Naquela noite fechei os olhos e logo adormeci, o som dos grilos parecia cada vez mais distante, cedendo lugar à voz suave da emoção que progressivamente inundava meus ouvidos. Ela falava coisas bonitas e tentava me convencer a fazer um passeio de barco cujo caminho era bastante assustador. Pegando gentilmente em minhas mãos, ela foi me conduzindo pelo oceano de incertezas ao mesmo tempo em que me encorajava a superar qualquer dificuldade que surgisse pelo caminho. E assim me deixei levar pela correnteza de suas águas. 

Diversos foram os percalços, mas a emoção me deu a força suficiente pra seguir adiante com firmeza. Tudo parecia tranquilo, olhei ao redor e o horizonte se perdia de vista, o azul do (a)mar emendava com o azul infinito do céu e então senti-me todo água, comungando daquela imensa massa líquida. Nesse exato momento o azul começou a escurecer, o tempo fechou e o céu desabou na minha cabeça como uma tempestade negra e traiçoeira. De repente me vi ao relento em um barco abandonado em meio ao mar-aberto, pronto pra ser engolido por suas águas enfurecidas. Não sei ao certo o que despertou essa ira, mas tive muito medo, me encolhi e esperei que algo me salvasse daquela situação angustiante. 

Uma pontada dolorosa na cabeça me fez despertar do sonho, era a mão pesada da razão que me trazia de volta sem a sutileza daquela que me encorajou ao passeio. Eu estava completamente suado, molhado com as águas do (a)mar e custei a acreditar que era um sonho, pois a sensação era bastante clara: eu estava mesmo me afogando num poço de insegurança. Ainda assustado, sentei na cama e pude contemplar novamente o som dos grilos. Lá fora a chuva forte alagava a cidade com sua dor, aqui dentro do meu peito o silêncio tentava sufocar qualquer resquício de emoção do (a)mar.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

No carnaval a vida se perde. Ou se encontra.


No carnaval a vida se perde. Ou se encontra.


Estava em casa, ainda vestido com meu pijama xadrez melado de pasta de dente, quando ouvi o som de orquestra lá fora. Ela carregava um entusiasmo e uma animação dignos do meu reconhecimento, o volume parecia aumentar gradativamente como se viesse ao meu encontro. E vinha. Guiado pelo barulho, me aproximei da janela pra ver o bloco passar, era carnaval, época em que costumo ficar em casa assistindo filmes, comendo e dormindo bastante, pois pular no meio de gente suada e embriagada nunca me pareceu divertido.

Nesse dia, porém, fui surpreendido com um fato que jamais me passou pela cabeça, enquanto contemplava o som e observava as pessoas em meio às serpentinas e confetes, vi minha vida passar. Esfreguei os olhos que ainda estavam um pouco inebriados com resquícios de sono acumulado e constatei que era ela sim, saltitando no meio daquele povo ao som do melhor frevo Recifense.

A adrenalina tomou conta do meu corpo instantaneamente, me belisquei, me sacudi, me olhei no espelho e não encontrei em mim sinal algum de vida. Senti-me perdido, desnorteado, sem enxergar outra solução senão correr atrás daquela desajuizada que havia abandonado meu corpo sem qualquer aviso. Encarei-a da janela pela última vez, fiz cara de raiva e ela acenou pra mim, soltou um beijo e mergulhou no meio do bloco.

Nesse instante, fui tomado pelo impulso e corri até o elevador, não me passou pela cabeça que eu estava todo descabelado, sem lenço, sem documento. Nem mesmo a porta de casa lembrei de fechar. Apertei o botão do elevador e nada, apertei de novo, e de novo, nove vezes seguidas. Decidi usar as escadas, pois minha vida estava escorrendo pelos meus dedos e eu não podia demorar a resgatá-la. Desci os oito andares em um instante, mais parecia um foguete.

Lá embaixo encontrei um mar de gente. Fiquei aflito sem saber como encontraria minha vida no meio de tantas pessoas. Meus olhos caçavam em todas as direções, mas havia muitas cores e sons, vultos e fantasias, fiquei um pouco confuso no começo, até me situar no processo e tomar coragem de me enfiar no meio daquela bagunça chamada 'Carnaval'.

Deparei-me com inúmeras odaliscas, bruxas, batmans, hippies, bode gaiato, chapolim, mulher-gato, Obama e uma turma que mais parecia a família Adams. Não era fantasia, devia ser feiura mesmo. Também vi mulher-melancia, mulher-melão, mulher-caju, mulher-salada-de-fruta, mulher vestida de homem e homem vestido de mulher. Tinha de tudo. Não sei como minha vida foi se meter no meio dessa "babilônia em chamas", queria apenas encontrá-la e voltar pra casa, comer, dormir e assistir filmes.

Procurei-a exaustivamente, o calor estava demais, a combinação de sol e aglomerado humano ainda aumentava a sensação térmica. Parei pra comprar água, só tinha cerveja, mas de qualquer forma eu estava sem carteira e sem dinheiro. Recebi elogios pela fantasia de pijama. Fantasia??? A essa altura eu nem ligava mais, estava desanimado com meu fracasso, quase aceitando que minha vida havia sido perdida de vez.

No meio daquele empurra-empurra senti algumas apalpadas, percebi muitos olhares e logo estava cedendo às conversas. A sede era grande e tomei uma cerveja, não recordo quem me ofereceu. Logo tomei a segunda e a terceira. Procurei minha vida e nada de encontrá-la. Tomei a quarta e depois parei de contar... Quando dei por mim estava no clima da festa, frevando até o último acorde, mesmo sem nunca antes ter frevado.

Daí em diante desisti de procurar pela vida, joguei-me nos braços da folia e foi assim que acabei esbarrando, sem querer, com a dita cuja em plena folia. Juntos, nos divertimos demais e no fim da tarde voltamos pra casa, eu e ela. Estava tão exausto que nem comi, tampouco quis assistir qualquer filme, só pensava em tomar um banho e dormir. Às vezes fico pensando sem compreender como pude ficar tanto tempo debruçado na janela esperando a vida passar.

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

À espera de uma melancia



À espera de uma melancia

Há cerca de três meses seu organismo mostrava diferenças, seus pés pareciam maiores, sua barriga também. O aroma de jasmim exalava de sua boca toda vez que soluçava. E passou a sempre soluçar após as refeições. Começou a sentir-se estranha e aquilo a incomodava bastante.

Sendo assim, foi ao médico procurar saber o que estava acontecendo. Uma melancia! Estava grávida de uma melancia, podia ver no ultrassom suas ranhuras entrecortando o corpo daquele fruto longitudinalmente. Foi tamanha emoção que não se aguentou, chorou em prantos deitada na maca.

Chegou em casa e logo providenciou uma enorme fruteira para recepcionar seu concepto. Ela era vermelha da cor de sangue com bordas esverdeadas e entrecortadas, formando mosaicos bastante interessantes.

No enxoval comprou um conjunto de pratos de porcelana, todos pintados delicadamente à mão com o tema variado de flores campestres, orquídeas, violetas, tulipas, gerânios, girassóis e outros. Cada prato era representado por uma flor distinta. Guardanapos de pano complementavam o arranjo.

Os talheres de prata ela ganhou de sua mãe, estavam na família a três gerações e ficavam guardados numa caixa de couro revestida internamente com veludo verde, reservados apenas para ocasiões extremamente especiais. Eis que logo chegaria mais uma delas.

Ainda faltavam seis meses e ela precisava se preparar, pois a barriga ainda cresceria bastante. E os pés também. Todas as manhãs ela tomava um banho de sol vestida de verde para que pudesse absorver determinada faixa de luz que certamente seria importante para o desenvolvimento de seu concepto.

Aos sete meses de gestação o médico afirmou que sua melancia já era dotada de inúmeros caroços ainda imaturos, ela se emocionou muito e quase inundou o consultório de seiva. Não aguentava esperar tanto pra ver os primeiros ramos de sua melancia. Será que nasceria com alguma folhinha? Ou apenas surgiria depois? A ansiedade lhe consumia por dentro.

Os beija-flores já circundavam a casa constantemente, guiados pelo aroma de jasmim que exalava da boca da gestante, sinal de que estava se aproximando o momento do fruto nascer. Todos os dias eles voavam pelo quarto dela como anjos mensageiros e protetores, batendo suas asas rapidamente e seguindo adiante após conferir que ainda não havia ocorrido a expulsão do fruto.

O nono mês chegou com muita emoção, os pais da moça aguardavam tal acontecimento com muita felicidade, era a primeira melancia a nascer na família e estavam todos muito orgulhosos. No dia em que ela sentiu a respiração ofegante e a dor típica de quem vai parir uma melancia (ela não conhecia até então, mas de imediato soube identificar), foi encaminhada à feira mais próxima.

Com o facão a postos e rodeado de beija-flores o feirante iniciou a retirada daquele enorme fruto, sete kilos, cheia de saúde, casca íntegra, sem fungos ou lacerações. Perfeita. A mãe foi fechada e logo as mulheres todas se sentaram à mesa para desfrutar de tamanha alegria.

Cada qual pegou seu prato de porcelana florísticamente ornamentado e tratou de fazer uma fila. A mãe, orgulhosa fatiava sua cria expondo sua carne vermelha e suculenta para que todas vissem como era boa ‘parideira’. Cada uma provou um pedaço e todas se deliciaram com aquele sabor extremamente doce e rico em vitaminas. Depois, cada uma aguardava secretamente que alguma semente tivesse êxito em seu organismo. Será que alguma seria beneficiada com o prazer de gerar uma melancia dentro do próprio ventre?

Os meses passariam e a torcida seria grande para que alguma conseguisse repetir a façanha. A mãe procedeu com o ritual de eliminação da casca de seu fruto, encarregando-se de enterrá-lo devidamente. O médico sentia-se orgulhoso de ter cuidado desde cedo de uma melancia tão promissora que modificou profundamente a rotina daquela pobre vila. Os meses passaram e muitas eram as vindas ao consultório, queixas mais diversas surgiam, o ultrassom nunca revelava nada atípico, apenas o de sempre, peras, maçãs, morangos e jabuticabas.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Do reduto de um casulo


Do reduto de um casulo

Foge da própria sombra,
tem medo de si mesmo.
Vive tão cheio de lombra,
atirando sua vida a esmo.

Sofre calado, tristonho,
tamanha dor não lhe cabe.
Vive um temor medonho,
Sempre fugindo do embate.

É na escuridão que encontra,
sua grande chance de fuga.
Não há sombra, nem afronta,
é assim a paz que procura.

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Perseguição



Perseguição

Terminar dói,
acabar destrói.
E quem não lida com a dor,
é mesmo um terror!

Na minha estante,
livros inacabados.
Dali em diante,
Vários iniciados.

Não acabo o namoro,
Não largo o emprego;
Sinto-me o tempo todo,
perseguido pelo medo.

Assim a vida vai passando,
e permaneço inacabado.
Enquanto ela estiver me caçando,
quedarei desanimado!

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Fechando a ferida


Fechando a ferida

Logo, logo, tudo isso vai acabar. Fecho os olhos e sinto o sangue quente corando meu rosto, percorrendo rapidamente meus vasos; enxergo ora vermelho-intenso, ora vermelho-suave, conforme o ritmo acelerado do meu coração. Nesse instante, sinto a raiva me consumindo e percorrendo todo meu corpo, ela cerra meus punhos e me causa um impulso destrutivo que luto pra conter. Procuro me acalmar, afinal sei que tudo vai passar.

Concentro-me na areia que escorre lentamente pela ampulheta e percebo que a maioria dela já atingiu a porção inferior, não nos resta muito tempo. Aos poucos minha raiva vai passando e cedendo lugar à tristeza, abro os olhos e eles estão completamente úmidos. Sinto vontade de chorar, mas me seguro pra não te dar esse prazer. Já basta sua incrível habilidade em me machucar com palavras e cutucar aquela ferida que resguardo num lugar onde apenas nós dois temos acesso.

Você faz da guerra uma arte e eu tento transformar em arte o meu sofrimento, mas não sou tão habilidoso quanto você. Respiro fundo, prendo as lágrimas e dirijo minha atenção à ampulheta: o tempo está passando e o que estamos construindo? Vejo entre nós dois um rio de mágoas no qual costumo me afogar. Da minha parte me empenho em construir uma nave enquanto você seleciona as pedras mais afiadas para me atingir. Depois que agride me aluga os ouvidos com discursos vazios que não me iludem mais, tampouco me enchem de esperança.

Sei que vou voar, logo, logo, vou voar. Sofro enquanto você senta na poltrona e lê o jornal como se nada estivesse acontecendo. Fecho os olhos e vejo que tudo está acabando. Sei que quando abri-los novamente tudo será diferente, cada qual terá o que cativou e de nós dois restará apenas o dito pelo não-dito, as dores bem guardadas e resolvidas por cada um a seu gosto. Quando enfim o dia chegar, irei embora aliviado levando na lembrança somente o pouco que te pedi - bem pouco - e deixarei contigo as angústias que não resolvemos. Faça delas o que você achar melhor.

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Medusas de Saturno


Medusas de Saturno 

Em Saturno o azul das águas se mistura com o azul do céu de modo que na região limítrofe entre eles se forma uma atmosfera desconhecida para nós humanos, uma espécie de matéria que não detemos em nossa dimensão. Não é um substrato líquido nem sólido, tampouco gasoso; ele se presta a intermediar os dois mundos que divide. Chamarei de fluox.

Nesse lugar os peixes passeiam em meio aos pássaros e ambos se confundem como numa ilustração do Escher, talvez ele próprio tenha visitado Saturno e lá tenha encontrado a inspiração para produzir tais gravuras. Também há inúmeras medusas que vagueiam desajeitadamente pelo fluox e às vezes até dão uma escapulida para o céu, mas voltam rápido à região limítrofe e mergulham na água igual fazem os golfinhos na superfície pra respirar. Voltam logo senão explodem no ar.

Coloco minhas mãos em meio ao fluox, sinto um calafrio percorrer a espinha como se uma pedra de gelo escorregasse por ela. Enquanto isso, as medusas passeiam por entre meus dedos, fazem cócegas na minha alma e eu rio. Sinto-as vagando pelos meus vasos, dando às minhas hemácias uma nova energia eletromagnética e, então, vejo-as sairem inertes à trama emaranhada de minhas plaquetas. Nada é capaz de prendê-las!

Queria poder trazer um pouco do fluox para minha casa, colocaria num aquário com medusas translúcidas, mas elas não suportariam viver aprisionadas sem movimentar a energia como fazem em Saturno. Até pouco tempo eu nem sabia, contudo elas têm uma importante função universal no que diz respeito à manutenção energética.

Descobri que as medusas nascem da medula dos Saturnianos, carregam consigo a energia da vida e a distribuem por todo o horizonte infinito - através do fluox - de onde seguem adiante até as dimensões mais longínquas. Em determinado momento as medusas cruzam o fluox e viajam até o céu onde se rompem liberando fluidos que se conectam às estrelas. Esses astros, então, atuam como difusores, irradiando as boas energias da vida até nós.

Enquanto dormimos recebemos descargas de fluidos Saturnianos que provêm originalmente de suas medulas. O grande papel das medusas consiste na modificação e adequação da energia, tornando-a mais densa e perfeitamente absorvível pelo nosso organismo.

Graças a esse processo, à cada dia aqui na Terra acordamos revitalizados e prontos pra mais uma jornada de intensa batalha. Enquanto em Saturno as medusas passeiam pelo fluox condensando a essência da vida; nós admiramos as estrelas, demonstrando nossa eterna gratidão.

[Mente Hiperativa]

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Castelos de areia


Castelos de areia

Iluda-me!
Com falsas promessas,
belos sonhos,
planos inalcançáveis.

Quero as histórias mais bonitas
e desejar que se tornem realidade.
Preciso ouvir uma canção,
sentindo-a tocar minh'alma.

Conte-me o que será de nós,
diga-me onde posso chegar
e que seja bem alto, bem alto...

Encha meu coração de esperança,
meus olhos de brilho
e minhas mãos de trabalho.

Eu não suportaria viver sem ilusões,
me tornaria um desiludido.
Prefiro acreditar, pois tudo é possível.
Então, iluda-me!

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O amor no divã



O amor no divã 

Eu quis te dar aquilo que eu não tinha e você não aceitou que eu te desse aquilo que você queria, mesmo que eu não estivesse de fato te dando. Você não quis. E eu fiquei com aquilo que não tinha sem saber o que fazer mesmo sem tê-lo propriamente. Você continuou sem aquilo que eu não tinha, porque não quis que eu te desse, mas queria. E continuou a buscar alguém que não quisesse te dar aquilo que não tinha. Eis, então, seu desafio: fazer alguém acreditar que tem aquilo que você quer e persuadi-lo a te dar aquilo que você quer que ele tenha (mesmo sem ter).

Enquanto isso eu permaneço aqui sem ter, mas ainda assim querendo te dar. E você não quer. Todavia não serei mais besta, não cairei na tentação de procurar alguém que não queira o que eu não tenho para que então eu tenha que convencê-la de querer o que eu não tenho e assim o aceite. Esse desafio eu não quero pra minha vida. Agora quem quiser que me convença a dar o que eu não tenho e ainda finja que não quer pra que eu sinta vontade de dar.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Um café, um fantasma e um bom papo



Um café, um fantasma e um bom papo

O passado às vezes gosta de fazer uma visita surpresa, chega num dia de semana no fim da tarde e sem avisar bate à nossa porta. Quando abrimos e nos deparamos com aquele velho conhecido é inevitável o choque. Falta ar, as pernas tremem e por um instante desejamos até que aquele momento tivesse sido evitado. Mas é melhor assim, sem escolha, pois muitas vezes fato de encarar o passado é uma ótima forma de reeditar as lembranças, tornando-as mais saudáveis.

Pensando bem não há porque temer o passado quando se está com a consciência limpa, quando se agiu com honestidade. E mesmo que algum erro tenha sido cometido, essa é a hora de provar humildade e se redimir. Um encontro com o fantasma é sempre uma boa oportunidade de 'colocar tudo em pratos limpos' e sobretudo subir alguns degraus em direção à paz de espírito. É importante aproveitar essa chance pra selar o caminho de ambos com bastante prosperidade.

Por isso, logo que passou o susto convidei-o pra entrar, tomar um café e colocar o papo em dia. Por onde andou nesse tempo que esteve sumido? O que fez de bom? Conte-me sobre suas aventuras, tenho muito a dividir com você, caro fantasma, como nos bons e velhos tempos em que éramos parceiros.

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vá se tratar, seu louco!


Vá se tratar, seu louco!


Lucila gosta de apreciar o cheiro de anjo que vez por outra “brota”, segundo ela, do teto de seu quarto e cai em sua cama como uma chuva de plumas. Andréa costuma passar o sábado à tarde conversando com seu avô e outras pessoas mortas enquanto toma café no terraço do antigo casarão da família. Os gêmeos Cláudio e Manoel mantêm seus objetos enfileirados e paralelos afim de evitar qualquer tipo de acidente ou situação de risco com os familiares; haviam descoberto logo na infância essa incrível capacidade de protegê-los. Quando uma abelha ou borboleta entra em seu apartamento, George se coloca em posição de meditação e repete o mantra sagrado da cabra-das-montanhas, pois acredita estar recebendo a visita da divindade em seu humilde lar.

Doutor Gregório não concebe que essas pessoas ajam de forma tão louca e permaneçam "soltas" por aí. Sua vontade é internar todos eles e submetê-los a um tratamento severo até pararem de fazer coisas estranhas. Particularmente, não estou bem certo quanto o diagnóstico... talvez seja loucura mesmo, ou apenas falta de imaginação e criatividade, mas de qualquer forma o Dr Gregório precisa se tratar com urgência!

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Emoções do (a)mar



Emoções do (a)mar 

São quatro da tarde na ilha da saudade, acabei de acordar sem a mínima coragem suficiente pra levantar e abrir as cortinas. Na verdade fujo do sol e de seus raios de felicidade que não conseguem me contagiar. Permaneço, então, no embalo da rede como uma criança a ser balançada nos braços da Mãe. Tento buscar alguma motivação que me leve a encarar o mundo lá fora; já se foram vinte minutos e não consegui mexer nem a pálpebra do olho. Por que você não está aqui ao meu lado pra me dar a força que preciso nesse momento? Depois de uma noite inteira de sonhos você sumiu e me deixou a ver navios... Fiquei de fato a sonhar.

Agora o sol já está bem longe, é inevitável, preciso abandonar o conforto e a segurança quase uterinos do meu quarto para encarar o mundo, arrisco passos inseguros em direção à porta de casa, observo o céu, azul como o mar, sinto o cheiro de maresia – tão seu – que me invade e bagunça minhas lembranças mais primitivas. Agora, sentado no batente da escada, contemplo a imensidão de água salgada e sinto o frio correr minha espinha, apesar do sol ainda não ter sumido completamente. O mar cheio de remorso e culpa vem se retratar a mim, fazendo do ir e vir de suas ondas um acalanto para tranquilizar minha alma calejada por seus duros golpes de outrora.

A essa altura suas águas já não me fazem qualquer convite, também não me assustam como antes; mesmo assim ainda tomo o devido cuidado de respeitar certa distância pra evitar que me façam mal. Logo abaixo encontro meu barco subindo e descendo ao sabor da maré, amarrado por uma corda grossa que o impede de se perder ou sair navegando sem rumo. 'Coragem', o nome dele. Ao vê-lo oscilando na superfície lembro-me das inúmeras aventuras que vivemos juntos, as boas e as ruins, mas todas bastante carregadas de emoção. Recordo que já naveguei muito por esse mar, entretanto hoje a coragem permanece presa à terra firme. E é assim que deve ser.

Já é quase noite e ao horizonte admiro inúmeros barcos navegando pelo oceano sem-fim, talvez sejam pescadores se lançando à sorte de retornarem com suas redes cheias. O meu barco permanece amarrado. As pessoas parecem divertir-se ao desafiar o lençol azul de água, certamente não têm noção do perigo, não imaginam o risco de serem engolidos e se afogarem... Quando dirijo meus olhos ao meu barquinho, frágil e repleto de remendos, de imediato me contagio com sua fraqueza e abandono. Então, penso logo: melhor assim, mantê-lo atracado é mais seguro, é mais prudente.

Desço a escada até a beira-mar, molho os pés na espuma das ondas e logo me escapa um subterfúgio: preciso fazer a barba! e volto pra casa rapidamente. Coloco uma música pra tocar, sirvo um cálice de vinho e busco abrigo no aconchego do meu quarto. Deito na rede e me balanço no embalo das ondas que vem e vão, afinal não preciso de 'Coragem' para viajar, a noite é longa e certamente me reserva um bom sonho de (a)mar.

LEIA TAMBÉM: Meu medo de (a)mar

                                      [Mente Hiperativa]

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Teu mal me fez Bem


Teu Mal me fez Bem

A maturidade me faz perceber que tudo que deveria ter sido ruim acabou de alguma forma se tornando bom, o universo me deu de presente boas pessoas que me acolheram com amor. Graças a ajuda delas consegui mudar o rumo da minha caminhada e escapar do destino infeliz que já era minha rotina. Não acredito que tenha sido sorte, mas oportunidades bem aproveitadas.

Hoje percebo que tua ausência deixou enormes espaços vazios e isso me fez correr atrás de algo pra me preencher. Sem saber você me deu uma ótima oportunidade de permitir o estreitamento com outras pessoas que se tornaram tão estimadas e importantes na minha vida.

As palavras rudes que você me dizia repercutiram em meus pensamentos, me fizeram sentir muita angústia e dor, mas apenas por um tempo. Depois a vida me ensinou a usar um escudo que me protegia das feridas que sua voz me causava. Daí em diante passei a perceber novos sons que antes eu não parava pra escutar, palavras doces e macias foram ofertadas a mim, vindas de outras bocas.

Hoje tuas atitudes não me atingem como antigamente, não me parecem mais socos e pontapés; são apenas suspiros que passam por mim como o vento. Apenas me arrepio, mas não me machuco; não sou mais vulnerável como já fui.

Mesmo sem querer me fazer mal, você fez. Entretanto, superei com maestria e hoje posso passar ao seu lado sem temer. Sou forte e construí uma muralha em torno de mim mesmo, formada por pessoas de mãos dadas que me amam e me amparam caso eu venha a cair. Não estou só nesse mundo e deixei de ser um alvo fácil. Desejo-te felicidade, pois cada um divide o que tem.

[Mente Hiperativa]

domingo, 12 de janeiro de 2014

Café e saudade


Café e saudade

Às vezes sinto muita saudade... mas luto contra a tentação de te procurar. Tomo uma xícara de café para aquecer a alma e me escoro na janela a pensar: será que você também pensa em mim?

[Mente Hiperativa]

sábado, 4 de janeiro de 2014

Reflexões de identidade no meio da madrugada


Reflexões de identidade no meio da madrugada

Nem só de crise vive o ser pensante, mas sobretudo de reflexões. E não há melhor horário do que a madrugada pra despertar os pensamentos mais abstratos e ilógicos possíveis, que no fim das contas nos conduzem por uma viagem de ideias e conexões entre a loucura e o verdadeiro sentido das coisas. Qualquer comentário pode parecer bobagem, mas cada gesto e figura representam um valor para aquele que o interpreta, afinal pra tudo há um sujeito oculto pelo nosso subconsciente.

E pensando na madrugada conclui que sou um cérebro o qual precisa de outros cérebros pra confabular ideias, sou tão coletivo quanto um bando de gnus atravessando a planície do Serengueti e tão inútil quanto um único neurônio isolado, incapaz de produzir qualquer sinapse. Sou unidade, sou amontoado que se perde na multidão e perde a individualidade sem perder a identidade.

Tenho um coração que busca a faca que o perfure sem dó nem piedade, preciso de lágrimas para mover meus sentimentos e fazer bater esse músculo esculpido em pedra sabão. Por isso, então, que quero sempre o fio da navalha a percorrer minha carne fazendo-a despejar o sangue vermelho, vivo, voraz, viajando vagarosamente pela minha alma. E se doer, suportarei até o fim a dor, pois ela me fará sentir vivo.

Lembro daquele dia que quis ficar sozinho, descobri que só não sou nada, senti-me um pedaço de vento sem poder correr, um aparelho de som flutuando no vácuo do universo, que grita mas não fala. Poderia ter nascido como um pedaço de grama no meio do gramado de um estádio de futebol, mas mesmo que tivesse nascido como um simples tufo ao lado de uma tampa de esgoto poderia ao menos tornar menos fétida a podridão que dela exala. E se eu fosse uma flor, que diferença faria adornar os cabelos de uma moça ou compor a coroa que presta uma homenagem póstuma num velório?

Sinto-me como uma vela a derreter sua cera quente, na missa ou no velório, na comunhão ou no aniversário. Sou o calor da vela, do corpo doente, em chamas, sou a vida transbordando do rio, da chaleira ou da sua paciência. Sou humano, sou um pouco disso tudo. Talvez eu não seja nada disso.

Fugi de casa pra não ter que dar satisfação a mim mesmo, talvez eu não queira me encontrar e me perca, mas posso me achar no primeiro bar da esquina, depois bater na igreja. E ainda assim eu não sei quem sou. Será que um dia vou saber? Aliás, será que preciso mesmo saber?

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Feliz amo novo


Feliz amo novo

Começou um novo ano, tempo de alimentar o combustível da vida que é o amor. Desejo a todos que tenham novas oportunidades de se reconciliar com pessoas que estão sem falar, que conheçam novos lugares apaixonantes, novas pessoas interessantes, sabores exóticos, paisagens, circunstâncias diversas. Continuem amando aqueles que já conquistaram um lugar em seu coração,  mas abram espaço pra mais gente. O amor é infinito e cabe numa palavra, num gesto, num olhar ou num toque. Quem ama nunca envelhece a alma e até nos momentos tristes reconhece um bom motivo pra sorrir. Que 2014 seja recheado de amor para todos nós. Amem.

[Mente Hiperativa]