sábado, 30 de julho de 2011

JM Basquiat

JM Basquiat

Cena do filme 'Basquiat - traços de uma vida'. A ilustração acima também é dele.

Ela abriu a porta e disse: 'acorde!' Ele estava deitado na cama sem vida. Gina abriu a porta. Ele tossiu bastante depois de suas porradas. Deu-lhe um beijou. Seus olhos permaneciam semicerrados, fixos. Ela abraçou-o e chorou ao vê-lo vivo. Bateu no seu peito, invocando seu nome. Ela pulou em cima de Jean e deu-lhe um beijo. Ela não acreditava no que via. Chamou seu nome, que não respondeu. Ele apenas olhava para o teto com a boca aberta. Ela largou a bolsa na mesa e tirou os sapatos. Gina teve raiva dele. Nem sentiu seu pulso. Ele não respondeu ao seu bom dia. Aquele corpo apático. Encostou a cabeça no seu peito. Chorava demais. Ela viu a seringa no chão. Ela chegou em casa pra matar a saudade. Ele estava morto. Ela saiu de cima dele. Matar a saudade. Jean estica o braço e pega um cigarro. Não ouviu seu coração. Será que teve nojo? Estava morto. Ela quase morre. Ela não acreditava no que via. Ela se sente uma merda.

Nota: Queria escrever sobre o filme então escolhi a cena em que Gina encontra seu namorado, Jean-Michel Basquiat, aparentemente morto e depois de desesperar-se percebe que ele havia se drogado. Não pude escrever linearmente, não poderia retratar de forma ortodoxa um artista que destoou tanto dos padrões convencionais.

[Mente Hiperativa]

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Uma fuga alucinada - ou um passeio de metrô

Uma fuga alucinada - ou um passeio de metrô

Ele cansou daquela casa, daquela atmosfera, daquele ar insuportavelmente seco e frio, cansou daquelas paredes encardidas e insípidas. Fugiu de casa, não deixou bilhete, aviso ou justificativa, só fugiu desesperadamente rápido de tudo aquilo que sentia.

Não levou consigo nenhuma mochila, não levou roupas, comida, livros, nada, somente a roupa do corpo e alguns trocados que tinha na carteira, não queria nada daquele lugar, nenhum sentimento, nenhuma recordação, foi embora sem olhar pra trás, sem despedidas, sem drama, sem saudade, e assim partiu pra não mais voltar.

Vagou um pouco pelas ruas sem saber pra onde ir até que avistou a estação do metrô, comprou um ticket e apanhou o primeiro carro a sair, sem nem olhar o destino, pouco lhe importava a essa altura, queria mesmo era se ver bem longe dali e de tudo aquilo que tanto lhe trazia incômodo.

Sentou-se no fundo do metrô, na janela, e ficou contemplando a paisagem que corria com pressa, as árvores, o sol forte, quente, e as casas, muitas casas, todas diferentes da sua, cheias de cores, alegrias, pessoas, enfim, cheias de vida.

Observava também o entra-e-sai de gente, os tipos humanos, seus costumes, suas conversas, tudo ele anotava atentamente em sua mente, ao fundo ouvia o som abafado de um rádio, talvez fosse do próprio metrô ou quem sabe de algum usuário incoveniente. Mas o som não lhe incomodava, aliado ao friozinho do ar-condicionado parecia até um acalanto de mãe.

O metrô segue sua viagem deslizando pelos trilhos, produzindo aquele som característico das rodas correndo, levando, rolando, suando, que enchia seus ouvidos, aquele som - calmante e agradável - era a trilha sonora da sua fuga.

Enfim o metrô chega ao fim da linha, à última estação, e então todos descem felizes por terem chegado ao seu destino. Ele teme ficar sozinho no vagão e vai atrás de todo mundo, mas diferente dos outros que tinham encontrado o seu caminho, ele permanecia a esmo e por isso pegou o metrô de volta, retornou ao ponto zero.

A viagem de volta pareceu mais curta, o som do metrô deslizando pelo trilho lhe acompanhou fielmente, fazendo-o lembrar do seu propósito de fugir e de estar ali naquele momento. As árvores continuaram passando rápidas pela janela, mas o sol não mais brilhava quente e imponente, agora estava se pondo, se despedindo, como as pessoas fizeram na última estação.

Finalmente chegou em casa, não estava arrependido de ter saido asssim sem avisar, sem deixar explicação alguma, logo ao entrar na sala constatou que ninguém havia dado por sua falta, ninguem havia percebido sua evasão, seu sumiço. E não poderia ter sido diferente, ele fugiu de casa pra fugir da solidão e do tédio, morava sozinho.

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Te mato na unha


Te mato na unha


Eu me calo, me sufoco e não falo. Eu sei que isso te mata, meu silêncio te faz mal, por isso fico calado, te mato na unha, devagar, te espremo com frieza, como se espreme um dente de alho.

Eu sei que se eu gritar você vai gritar ainda mais alto, se eu assumir qualquer culpa você vai pisar no meu pescoço como se eu realmente fosse o culpado, se eu te enfrentar você vai me esmagar e me retaliar como você bem sabe, por isso que eu não digo nada, nem que sim, nem que não, não retruco suas ofensas, nem concordo com suas loucuras.

Eu afirmo isso porque já tentei todas essas alternativas, já usei todos os artifícios que tinha ao meu alcance, hoje eu sei que meu olhar vago e minha boca fechada acabam por te derrubar melhor do que qualquer outra coisa. Eu também já cansei de tentar te fazer abrir os olhos para a realidade, desisti de te mostrar o outro lado da história, a outra verdade, a minha verdade. Hoje só me resta te presentear com a indiferença, a pior de todas as respostas, a mais amarga e dura que eu poderia te dar.

Por isso eu me calo, e mantenho a serenidade, não permito que me você me incomode como tenta fazer. Não sei se pra você o pior é o meu silêncio ou o fato de eu não me abalar diante da tua postura ofensiva, de uma forma ou de outra eu prossigo com meu plano exitoso, eu te mato na unha, calado.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 26 de julho de 2011

Incongruência amorosa


Incongruência amorosa

Pensou de imediato até onde poderia ir por ele. Iria até o céu, até a lua, lutaria contra monstros e dragões, contra a própria família e todos os que se colocássem no meio de sua história de amor. Amor? Tão rápido? Estava apaixonada, mesmo só tendo ficado uma única vez com ele, queria aquele garoto à qualquer custo, já sentia que o amava, precisava tê-lo de qualquer maneira, a qualquer custo, de qualquer forma. Se jogou pra ele, se ofereceu, se colocou à disposição dele, de bandeja, de graça, bem fácil. Faria tudo por ele, mas não se preocupou em saber até onde ele iria por ela.

[Mente Hiperativa]

domingo, 24 de julho de 2011

Pare de procurar, e ache!


Pare de procurar, e ache!

Procurou nas festas, na faculdade, no trabalho, nos sites de relacionamento, na agência matrimonial, nas viagens ao exterior, no luau, na lanchonete, no barzinho, na boate, na pracinha, na praia, na fazenda, no shopping, no teatro, no cinema, na barraca de cachorro-quente, na padaria, na fila do banco, na casa lotérica, no ônibus, na concessionária, na auto-escola, no quiosque de água de coco, na casa do pastel, na exposição de arte, no parque de diversões, no trânsito...

Até que um dia cansou de procurá-lo. Cansou e quando já havia desistido encontrou o amor ao seu lado, estava esse tempo todo bem debaixo do seu nariz.

O amor não se procura, se acha em momentos de distração.

[Mente Hiperativa]

sábado, 23 de julho de 2011

Vida e morte - até onde devemos lutar?

Vida e morte - até onde devemos lutar?

O curta-metragem 'A senhora e a morte' mostra, de uma forma divertida e inusitada, a luta que ocorre diariamente entre a equipe médica e a dona morte na sala de cirurgia, UTI e emergência hospitalar.



Como sabemos o médico não tem o poder de reverter a morte, mas pode usar de artifícios para que a mesma não ocorra, pode tentar evitá-la, adiá-la. Mas até que ponto ele pode/deve fazer isso? Afinal em algum momento o paciente precisará morrer, e médico algum poderá evitar esse desfecho. Até onde devemos insistir na vida?

Às vezes me pergunto -e essa questão é meio obscura- até quando devemos lutar pela vida do paciente? Quantas reanimações devemos proceder até que a luta seja dada como perdida? Por quanto tempo devemos prolongar uma vida vegetante? Devemos deixá-lo 'vivo' através de equipamentos, sem falar nem comer, sem reagir, como uma samambaia? Isso é mantê-lo vivo? Ou devemos aceitar que chegou sua hora e deixá-lo partir em paz?

Quando me faço essa pergunta [até onde devemos lutar?] logo uma resposta surge de imediato na minha mente, penso que devemos sempre lutar até o fim. Como profissional de saúde e amante da vida eu a valorizo e acredito que ela mereça todo o esforço e garra, mas de que forma podemos saber com clareza que é chegou 'o fim'? Como vamos saber que é a última chance se não tentarmos novamente???

Lembro-me da cena de um filme em que o médico perde o paciente na mesa de cirurgia. A equipe tenta diversas reanimações, mas depois de certo tempo dão a luta por perdida, o médico no entanto permanece de forma insana e repetitiva fazendo massagens cardíacas sucessivas diante do olhar desacreditado dos colegas. Ele não aceita, mas é tarde, o paciente já dormiu o sono eterno.

Então com toda essa obrigação de salvar vidas temos uma enorme dificuldade de encarar a morte, eu sei que um dia ela virá e não tem como evitá-la. Mas quando saber que chegou a hora? Como saber que é o fim e que não adianta mais lutar?

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Falso moralista


Falso moralista

O mundo está repleto deles.

"O que te incomoda no outro é na verdade a parte de ti que insistes em encobrir!"

Por isso duvide dos moralistas, em geral eles tentam esconder seus pecados à sete chaves e pra isso são capazes de travar uma luta diária pra não ceder aos impulsos 'humanos'. Eles condenam os outros como uma forma de condenar a si mesmos, reprimindo assim os seus pensamentos imorais; eles tentam fugir de sua natureza, tentam negar seus próprios desejos, mas é uma luta perdida pois ninguém foge do que carrega na própria mente.

O falso moralista tende a procurar uma pessoa que siga a mesma linha de raciocínio que ele pra estar ao seu lado, quer alguém que não tenha desvios, somente virtudes, não procura primeiramente o amor, mas o recato, a moralidade, os bons costumes, e espera que o amor nasça daí. Será que nasce o amor? Ou nasce o comodismo?

Ele precisa de alguém que o reprima em seus desejos mundanos, precisa de freios, quer alguém que sirva de chicote, que fique exposto na parede causando-lhe medo e adoração ao mesmo tempo, ele se impõe a chicotada diante do pensamento profano, mas não abre mão de ter o chicote por perto. Ele cria sua culpa e sua punição.

E o amor? Amar alguém é admirar suas qualidades? Ou tolerar seus defeitos? É analisar um currículo de vida? Ou senti-lo pulsar e esquecer de todo resto?

O falso moralista encontrou uma âncora, ela o segura e o impede de se jogar no mar dos prazeres, no oceano da loucura e dos desejos profanos. Ele se agarra à âncora como uma beata à cruz, como um recém-nascido ao seio materno, como um esfomeado à um prato de comida; é a sua salvação de si mesmo.

Sua fantasia não tira hora alguma, poderiam descobrir quem realmente é. Vive a fantasia de ser perfeito e correto, errados e pecadores são somente os outros. E à noite, no escuro, antes de dormir, tira sua máscara e coloca-a debaixo do travesseiro somente enquanto dorme, logo ao acordar de novo com ela encobrindo sua verdadeira face pecadora, humana.

E assim se passa por moralista, até a máscara cair.

[Mente Hiperativa]

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Louco ou completamente apaixonado?


Louco ou completamente apaixonado?

Assisti ao filme 'Ata-me', de Almodóvar, e confesso que nunca vi um diretor tão criativo e inusitado como ele, capaz de arrumar ainda uma brecha e colocar um ar cômico entre uma cena e outra do filme. O resultado é que seus filmes nos prendem a atenção do começo ao fim. Já vi diversos filmes do Almodóvar e nunca me decepciono, cada um tem uma novidade, ele nunca repete a fórmula, não copia o que está fazendo sucesso na mídia, ele é único, fantástico e LOUCO.

'Ata-me' conta a história de Ricky, que recebeu alta do hospital psiquiátrico e vai em busca do seu amor, Marina, uma ex-atriz pornô viciada em heroína que nem o conhece. Ricky tem um plano brilhante para fazê-la se apaixonar por ele, vai amarrar a moça na cama e só vai soltar quando ela quiser ser sua esposa e mãe de seus filhos.

Qualquer pessoa lê a sinopse e diz: "Que louco! Isso não deve prestar, nunca funcionaria". Mas pra a surpresa de muita gente presta sim, e funciona. E é louco mesmo, a paixão e a loucura estão de encontro marcado, andam juntas, inclusive acho até redundante quem diz 'louco de paixão'... Uma coisa já subentende a outra, a paixão nos torna loucos num mundo são, repleto de ceticismo; os apaixonados têm crenças e atitudes que um ser normal não pode entender.

O mais incrível é que toda essa loucura faz sentido, os apaixonados enxergam o que os outros não veem, daí compreendem o sentido das maiores loucuras. E que linha tênue separa a paixão da loucura? Quem se desafia a descobrir? Caso tenha pensado que pode se aventurar na paixão sem enlouquecer eu alerto logo, serás mais um a beirar a loucura, doce e ardente loucura da paixão!

Nota: Não sei porque as pessoas insistem em resistir tanto à loucura, é tão bom...

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 20 de julho de 2011

No meio do caminho tinha um nariz


No meio do caminho tinha um nariz

O nariz pode ser côncavo ou convexo, reto ou inclinado, adunco, aquilino ou empinado.

O nariz pode ser grande (personalidade forte?) ou pequeno (fragilidade?), pode ainda ser achatado, afilado, abaulado...

O nariz pode esconder verdades bem debaixo dele, e você demora a percebê-las mesmo estando tão perto.

O nariz pode nos causar a impressão de que somos donos de nós mesmos.

O nariz pode crescer quando mentimos (esse é mentira!)

O nariz pode destruir a auto-estima de uma pessoa, pode acabar com a harmonia de um rosto ou até conferir-lhe o charme da imperfeição.

O nariz pode ser como for e de uma forma ou de outra ele sempre ocupará o centro de tudo, ele fica entre os dois olhos que tudo veem, em cima da boca que profere palavras doces e pesadas.

No meio do caminho tinha um nariz, e dele ninguém escapa.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 19 de julho de 2011

Prenda-me!


Prenda-me!

Ata-me, amarra-me, prenda-me ao pé da cama, não vou querer fugir mesmo, quero mais é que tu tranque a porta, passe a chave, e fique comigo, prenda-me, quero ser seu refém, quero que me sequestre, não tenho receio de algemas, cordas, nem cadeados, não sofro de claustrofobia, só temo a solidão, você não sabe ainda, mas sou muito medroso, tenho muito medo de te perder, medo que não fique ao meu lado, por isso preciso dessa certeza, de que estará comigo, fica comigo nesse quarto escuro, e então pode usar qualquer artifício pra me prender, eu quero mesmo é ficar preso, pra sempre nos teus pensamentos. Prenda-me!

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Amor + dedicação = cura


Amor + dedicação = cura

Emocionante e verídica história de cura pelo amor que tive chance de conhecer de perto.

Sabe aqueles filmes que relatam uma história incrível de superação, que condensam uma vida inteira em apenas duas horas e meia? E aí quando o filme acaba nós levantamos da poltrona crentes de que tudo aquilo não passa de uma obra de ficção, que jamais poderia ter acontecido de verdade?

Pois há alguns dias eu tive a oportunidade de conhecer de perto uma história desse tipo, mas não era ficção, é verídica, cheia de emoção. Há quem diga que daria um belo filme, mas se virar filme ninguém vai acreditar que aconteceu de verdade... Vão pensar que foi fruto da mente fértil de algum cineasta, por isso é melhor que vire um livro, ou que simplesmente seja repassada através do boca-a-boca.

Fiquei sabendo da história de Gabriela e de sua mãe, Lucinha, porque elas foram se consultar com minha tia, que é médica otorrinolaringologista, e no meio da anamnese surgiu o relato de vida de Gabriela o qual impressionou minha tia, criando um elo, um laço, uma simpatia, uma admiração que logo se estendeu por toda a família, rapidamente elas se tornaram amigas e queridas por todos nós.

A trajetória de vida de cada uma delas, mãe e filha, se misturam a todo tempo de modo que fica difícil distinguir quando se conta a história de uma ou de outra, elas se entrelaçam, tornam-se uma só. O amor presente no coração das duas é que as une dessa forma, ele que transparece nas entrelinhas do conto, permeiam os fatos e ilustram a superação que cada uma delas conquistou ao longo dessa história conjunta. Uma apoiou a outra, ambas se seguraram e seguiram juntas o tempo todo, superando toda e qualquer expectativa, contrariando o senso comum, surpreendendo os indrédulos e céticos.

Lucinha teve três filhos, dentre eles Gabriela, a única menina, linda, loirinha, de olhos claros, mas que sempre foi muito quietinha, nunca deu trabalho algum. Desde cedo Lucinha notou que havia algo de diferente na sua filha, na escola ela não prestava atenção à aula, apenas observava o movimento cíclico da hélice do ventilador de teto, era capaz de ficar horas contemplando-a girar. Também não se sociabilizava com as outras crianças, não fazia amigos, não brincava, não interagia nem aprendia, e por isso repetiu várias e várias vezes de ano. Gabriela também não falava, tudo que desejava apontava com a mão da mãe, guiava a mesma até o objetivo que queria ter, usando sempre a mão de outra pessoa como instrumento ou extensão de si mesma.

Desde que percebeu o comportamento anômalo da filha, mais ou menos aos dois anos, Lucinha iniciou uma verdadeira peregrinação através de diversos médicos para tentar descobrir o que Gabriela tinha, sendo assim ela foi a diversos psiquiatras, psicólogos, terapeutas, fonoaudiatras, recebeu diversos laudos, pediram muitos exames, conversaram muito, mas nunca deram qualquer diagnóstico conclusivo. Até os doze anos de idade de Gabriela, Lucinha havia tentado todas as técnicas convencionais que estavam ao seu alcance, tentou de tudo, mas nada parecia resolver o problema de sua filha que continuava apática diante do mundo e das pessoas, sem nem ter aprendido ainda a falar.

Eis que um dia alguém comenta com Lucinha a respeito do Instituto Véras, onde se reproduz o método Doman de reabilitação direcionado à crianças com síndrome de Down, de Asperger, de West, epilepsia, lesão cerebral, autismo, dislexia e outros distúrbios de natureza neurológica.

A história desse instituto começou quando José Carlos Lôbo Véras sofreu um acidente e tornou-se tetraplégico, levando então uma vida vegetativa. Seus pais, Raymundo Véras e Maria de Lourdes Lôbo Véras, lutaram incansavelmente pela reabilitação do filho pois o fato dele estar vivo já era o suficiente pra movê-los adiante e enxergarem à frente. Eles tentaram todo tipo de tratamento possível, ouviram diversos prognósticos desfavoráveis até que resolveram ir até a Philadelphia conhecer o fisioterapeuta chamado Dr. Glenn Doman, criador de um método único de reabilitação. A partir daí o casal Véras conseguiu grandes avanços com relação ao filho, este recuperou os movimentos dos membros superiores e voltou a desenvolver atividades cotidianas, tanto que chegou a formar-se em medicina alguns anos depois.

Depois dessa incrível experiência, o casal Véras estudou profundamente o método Doman e criou um instituto chamado Centro de Reabilitação Nossa Senhora da Glória que reproduziria a linha de tratamento desenvolvida pelo Dolman e aplicada na Philadelphia. Vinte e seis anos depois de sua criação o instituto passa a ser gerido pelo filho do casal, o José Carlos, que deu seguimento à obra dos pais até o evento de sua morte; em seguida sua esposa continua o projeto, que passa a se chamar Instituto Véras, em homenagem aos fundadores.

Sendo assim, ao descobrir esse o método Doman, Lucinha não hesita em buscar ajuda financeira pra poder levar a filha ao Rio de Janeiro pra se tratar, surgia então mais uma esperança diante dos guerreiros olhos de mãe. Elas chegam ao instituto Véras e logo no salão Lucinha se choca ao ver inúmeras crianças deficientes, ela vê todo tipo de comportamento, algumas babam sem conseguir fechar a boca, outras batem a cabeça na parede, e muitas se arrastam sem conseguir andar direito, enfim, um cenário deplorável. Quando Lucinha consegue falar com algum médico ela logo afirma que vai embora dali, pois sua filha não é doida como todos aqueles outros que ali estavam, ela era diferente. O médico a surpreende com a seguinte frase: "Sua filha realmente não é igual a eles, ela é bem pior, ela é pior do que todos eles. E sabe porque? Porque ela não aparenta o mal que tem. Eles mostram suas deficiências, eles pedem tratamento, mas sua filha pode passar despercebida e sofrer o resto da vida exatamente por não parece doente."

Tais palavras tocaram o coração daquela mãe, que continuou firme no instituto. Após a devida avaliação, Gabriela foi notificada com 144 meses de idade cronológica e somente 12 de idade mental, o que confirmava o que o médico havia dito. Claro que pra qualquer mãe seria difícil escutar e aceitar aquilo, mas algum tempo depois ela pôde sentir na pele aquelas palavras duras. Quando o pai de Gabriela morreu, Lucinha entrou na justiça pra que a menina ficasse recebendo a pensão do pai, que lhe era de direito devido à sua condição. Foi aí que Lucinha reconheceu a imensa dificuldade de conseguir um atestado que comprovasse a incapacidade da filha, pois médico algum acreditava que ela fosse de fato doente. Com aquela cara saudável, sem babar nem bater cabeça como os outros, ela se passava por normal. Então Lucinha compreendeu a mensagem que o médico quis lhe passar no dia em que chegou no instituto.

Diante das dificuldades que encontrou pelo caminho, Lucinha encarou todas de frente, escutou as palestras, fez o treinamento e voltou pra casa com a sua filha, pronta pra travar aquela guerra e quantas mais fosse preciso. Os exercícios do método Doman que aprendeu no instituto Véras eram realizados pelas duas e baseavam-se na repetição, intensidade e frequência, deveriam ser feitos TODOS os dias, e duravam praticamente o dia todo. Havia uma planilha de horários e metas a serem batidas, eram tantas horas de corrida, tantas de engatinhamento e outras tantas de rolagem no chão, a criança precisava reproduzir todas as etapas de desenvolvimento. Além disso havia atividades que aguçavam os sentidos e a atenção, eram usados também alguns jogos de cartões, figuras, cores, palavras e sílabas de montar, tudo rigorosamente cronometrado e repetido intensamente.

Como o treinamento era bastante exaustivo, a mãe poderia ter pena do filho e resolver poupá-lo por um dia, e até poderia fazê-lo, mas no dia seguinte a carga de exercícios seria dobrada. Além disso TODO o exercício feito pela criança deveria obrigatoriamente ser feito pelo adulto que a acompanha no tratamento, este precisava sentir na pele o que a criança passava. Inclusive os remédios que a criança tomava deveriam ser usados pelo cuidador, no caso a mãe, para que o mesmo experimentasse os efeitos adversos que a droga causava.

Sem dúvida foi uma rotina de luta, dedicação e amor, muito amor, e todo esse amor trouxe resultados, aos 14 anos Gabriela conseguiu falar, o que representava um enorme avanço pra aquela garota que fora desacreditada por tantos médicos, entregue à própria sorte. Ela teve uma mãe que não se rendeu às negativas que ouvia, que lutou e persistiu até conseguir fazer da filha uma criança normal, tão capaz quanto qualquer outra.

Daí pra frente foram só conquistas e muitas alegrias, Gabriela conseguiu um emprego e trabalhou por anos como secretária, teve alguns namorados, aprendeu a costurar e fazer crochê como niguém, hoje é representante da tupperware junto com a mãe e não fica pra trás em nada, leva uma vida normal como a minha ou a sua. Incrível é perceber a familiariedade impressionante que ela tem com os números, ela decora a data de aniversário de todas as pessoas que conhece, além dos códigos de barras de cada um dos produtos que vende na tupperware; ela tem uma memória incrível, acima da média.

Hoje Lucinha exibe com orgulho a filha que, embora aparente bem menos, está com 36 anos. Gabriela é perfeitamente capaz de interagir, conversar, trabalhar, se relacionar, fazer amigos, paquerar, enfim, faz tudo que uma pessoa normal faz e se ela não contar sua história jamais alguem seria capaz de supor que um dia foi inviabilizada por tantos médicos. Hoja parece impensável que um dia aquela criança foi desacreditada, que lhe disseram que jamais poderia levar uma vida autônoma e independente.

Gabriela e Lucinha tem uma história incrível pra compartilhar conosco, elas nos deixam uma mensagem muito importante que não devemos nos resignar diante de tudo que nos dizem, não podemos aceitar os limites que nos impõem; com amor e perseverança podemos chegar além do que as pessoas esperam de nós, somos capazes de superar qualquer dificuldade e transformar qualquer realidade por mais difícil que possa ser.

Perceba que Gabriela poderia hoje ter uma idade mental bem inferior à que desenvolveu através desse árduo e longo treinamento, mas sua mãe acreditou nela, a própria Gabi acreditou em si mesma e juntas, com muito amor e dedicação, elas conseguiram mudar aquele contexto. E note que jamais ela teve qualquer diagnóstico fechado, seus exames apresentavam resultados normais, alguns médicos diziam que era preguiça, outros diziam que poderia ser uma lesão decorrente de uma infecção gestacional, mas nada era cartesiano, exato, os médicos não sabiam afirmar o que ela tinha de fato, apenas supunham.

Pra mim foi um imenso prazer conhecer essas duas, ouvir essa história. Foi como se elas dissessem a mim que eu posso fazer a diferença, me deram mais respaldo pra eu acreditar no 'impossível', me alertaram pra eu não me render diante das dificuldades, e isso eu vou carregar na minha vida e vou repassar a cada um dos meus pacientes quando chegarem desanimados e resignados ao meu consultório.

Lembro-me ainda de uma pergunta capciosa que Lucinha me fez:

Se o método Doman dá certo, por que ele não é tão popular e disseminado?
Porque não é tão divulgado quanto merece?


Na hora eu nem soube responder a ela, depois de ouvir todo aquele testemunho pra mim pareceu óbvio que toda criança com problema neurológico poderia tentar essa via de tratamento e recuperação. Eu disse a ela que não sabia porque esse método Doman não era ainda tão amplo e divulgado. Ela tinha a resposta na ponta da língua pra me dar:

Quando cheguei no instituto Véras havia uma faixa quilométrica dizendo assim: NÃO TEMOS TEMPO PARA PAIS QUE NÃO TEM TEMPO PARA SEUS FILHOS. A verdade, meu filho, é que pais que têm filhos com problemas desse tipo preferem levá-lo a um psicólogo duas vezes por semana, uma hora por consulta, preferem enchê-lo de remédios, dopá-lo e depois cobrar algum resultado desses profissionais; é bem mais fácil cobrar dos outros do que cobrar de si mesmo. Muitos desses pais não querem ter trabalho com os filhos, não querem abdicar de seus benefícios, de seu tempo, de sua vida, pra cuidar deles e acompanhá-los de perto. Quantos hoje em dia são capazes de dedicar o dia inteiro ao treinamento de um filho especial? Quantos podem e querem dar atenção exclusiva a um filho com problemas neurológicos, ainda que seja pra salvá-lo da invalidez? Muitas vezes o caminho convencional parece mais prático e cômodo, por isso o método Doman ainda não foi popularizado, por isso.

Eu tive que concordar prontamente com as sábias palavras daquele mãe guerreira.

Sem dúvida alguma essa foi a mais bela história que eu já vi tão de perto, fantástica. Aprendi bastante coisa com essas duas, aprendi que na vida nada é impossível pra quem acredita e corre atrás do que quer; e que somente a morte é capaz de frear nossa garra pela vida, então tenhamos cuidado pra não 'morrer em vida', é preciso lutar sempre e não se resignar jamais.

Site do Instituto Véras: http://www.veras.org.br

[Mente Hiperativa]

domingo, 17 de julho de 2011

Liberdade, ainda que tardia


Liberdade, ainda que tardia


Hoje ele acordou despojado de qualquer obrigação, tirou dos próprios ombros o peso de toda e qualquer responsabilidade. Hoje, só hoje, ele não queria compromisso com seu ninguém, com nada. Hoje ele queria o dia só pra ele.

Desvenciliou-se das amarras, e entregou o mundo aos seus próprios cuidados.

[Mente Hiperativa]

sábado, 16 de julho de 2011

O garoto brilhante


O garoto brilhante

Espero que tenham paciência de ler até o fim, é um pouco da minha história.

Aquele garoto não era normal, não era como os outros garotos da sua idade, não tinha os mesmos gostos, hábitos, rotinas e pensamentos que eles. Desde criança ele nunca gostou de jogar futebol -o que o tornava um ET diante dos amigos- e nas aulas de educação física do colégio ele sempre ficava na arquibancada observando a dinâmica da turma ou arrumando um jeito de 'perambular' pelos arredores da quadra de esportes, não gostava de participar das atividades coletivas.

Como já disse, seu comportamento não andava alinhado aos demais, enquanto seus colegas se divertiam jogando bolinha de gude ele procurava insetos no jardim, enquanto colecionavam álbum de figurinhas ele observava as conversas/conflitos familiares, e quando jogavam video game ele se colocava na janela do quarto a observar as estrelas no céu, nem fazia questão de disputar o game. Por essas e por outras, por não ser compreendido pelos garotos da sua idade, muitas vezes ele preferia estar no meio dos adultos; e de tanto seus colegas o encararem como um ET, às vezes até ele mesmo se questionava se era mesmo desse planeta.

Se havia um lugar que o tal garoto se sentia completamente desconcertado, deslocado, esse lugar era o colégio. Lá os garotos faziam tudo que ele não gostava de fazer, jogavam bola, conversavam, trocavam figurinhas do álbum, zoavam com os garotos da sala... E no recreio, hoje chamado de intervalo, ele ficava na biblioteca lendo um livro ou um gibi qualquer enquanto as outras crianças se divertiam no pátio, perdendo seu tempo com brincadeiras babacas, segundo ele julgava. Por muito tempo ele foi uma criança extremamente tímida e fechada, que tinha bastante dificuldade de se relacionar e fazer amigos. Além disso, desde cedo ele sabia que era diferente, ele sentia isso, porém não sabia o porquê de ser assim e muito menos o que fazer pra administrar essa questão.

Certa vez, aos 7 anos, ele fez um simples cartão numa aula de artes e entregou à professora, que era sua favorita; a dita cuja quase desmaiou de tanta emoção. Os anos se passaram e cada vez que ela o encontrava pelos corredores da escola fazia a maior festa pra aquele garoto, ele jamais entendeu porque ela ficou tão surpresa com uma simples homenagem, afinal pra ele era algo tão cotidiano, sua mãe recebia dezenas de cartões seus, e também desenhos, cartinhas e etc... Mas parece que antes dele jamais algum aluno havia prestado uma homenagem tão sincera e espontânea como aquela.

Quando ainda tinha uns 10 anos o garoto conheceu uma pessoa que foi bastante importante na sua vida, ela seria a primeira pessoa a abrir seus olhos e explicar um pouco do que estava acontecendo na sua cabeça. Fátima tinha seus 30 anos, simpática e falante, logo se afeiçoou ao garoto e ambos adoravam conversar, a despeito da diferença de idade.

Fátima reconheceu algo de especial naquele garoto, talvez tenha sentido sua aura ou notado um brilho diferente no seu olhar, mas isso pouco importa agora pois o fato é que ela tentou acalmar a sua tristeza, acabar com sua angústia, e explicar o motivo do seu sofrimento. Sendo assim, através de diversas conversas, ela explicou a ele que a razão desse sofrimento "sem sentido" residia no fato dele enxergar o mundo de uma forma distinta da maioria das pessoas, sua óptica não seguia o senso comum. Por isso ela afirmava, repetia, insistia para que ficasse gravado na mente daquela criança que ele deveria aprender a usar esse dom, que isso não era um defeito, e sim uma dádiva. Mas ele não entendia como uma dádiva poderia fazer alguém sofrer tanto.

Ela bem que tentou explicar a ele o seu poder de enxergar o que quase ninguém consegue ver, mas claro que na época ele não tinha o discernimento suficiente pra compreender tudo o que ela dizia, ele tinha apenas 10 anos. Mesmo assim o esforço dela não foi em vão, aquele foi apenas o primeiro recado que o garoto recebia na vida e mesmo sem ter entendido claramente, aquela mensagem ficou gravada, mais tarde o garoto encontraria outros amigos que relembrariam e reforçariam aquela conversa.

Assim ele se criou, sentindo-se diferente, às vezes sofrendo com isso, tentando ser normal, às vezes se isolando pra que não reconhecessem sua estranheza. Com o tempo acabou aceitando-se diferente, parou de tentar ser o que não é, e hoje administra o peso de ser uma pessoa excêntrica, incomum, subjetiva. Hoje, inclusive, o tal garoto não é mais tímido e cabisbaixo como era na infância, ele é seguro, comunicativo, possui uma capacidade extrema de cativar as pessoas ao seu redor, é amável, e sobretudo não tem medo de mostrar suas peculiaridades, não tem mais medo de ser encarado como ET ou estranho. Agora ele se permite ser ele mesmo, com todas as esquisitices que estão implicadas nessa afirmação.

Sendo assim, aquela criança enfim cresceu, tornou-se um homem, ingressou na universidade, e aí tudo mudou e ele passou a ser normal como os outros, certo? Errado. Ele tornou-se adulto sim, entretanto a realidade por vezes ainda lhe permanece confusa e dolorosa, mesmo agora ainda persiste a sensação de que as outras pessoas não conseguem acompanhar seus pensamentos, e vice-versa, ele ainda se sente deslocado nesse mundo. A maturidade certamente veio, o entendimento hoje é bem maior acerca das coisas, no entanto o garoto que hoje é um homem ainda não tem pleno domínio sobre suas capacidades, mesmo entendendo um pouco delas ele ainda não sabe utiliza-las ao máximo, não sabe dominá-las, e ainda sofre com isso.

De fato ele permanece seguindo a 'contra-lógica' da maioria, ele ainda fica admirando as estrelas na janela enquanto os amigos jogam video game, e disputam o troféu do jogo; mudaram os cenários e as brincadeiras, mudaram as estrelas do céu e o video game, mas ele continua com sua óptica diferenciada, e continua sem saber lidar perfeitamente com isso.

Na universidade, por exemplo, onde todos lutam pra obter a maior nota, o destaque, a mais alta posição no hancking, o prestígio dos professores, o reconhecimento dos pais, o diploma, a láurea... Ele não consegue seguir esse senso comum, pra ele nada disso faz sentido. Enquanto seus colegas imploram alguns décimos de acréscimo aos professores, se matam por uma prova de monitoria ou colam e sabotam avaliações, o tal garoto não sabe nem dizer a média que obteve em determinada matéria, pode perguntar que ele não saberá te responder. E não se trata de irresponsabilidade ou desorganização, ele simplesmente não se preocupa com esses pormenores, ele tem outra visão, ele elegeu outras prioridades que talvez os outros jamais entendam; pra ele a nota não passa de um número riscado no papel.

Sendo assim, muitas vezes as pessoas o tomam como relapso, aluado, e outros adjetivos menos generosos, mas ele não liga, não dá importância, primeiro porque sabe que não é verdade, e sabe também que as pessoas não dizem isso por mal, falam isso porque agem conforme o pensamento viciado e alienado que receberam, acreditam que os números traduzem o que somos, e que isso é muito importante; segundo por que ele tem amigos e desses amigos alguns, poucos deles, o compreendem.

Dentre esses 'poucos amigos' transparece nas suas conversas um entendimento semelhante ao de sua amiga Fátima. Certa vez o garoto se encontrava aflito, confuso e ao desabafar com esse amigo ele falou: "os gênios de hoje um dia foram considerados loucos e incompreendidos, só alcançaram o reconhecimento após anos e anos da publicação de suas obras". O garoto não resistiu e caiu na gargalhada, ele riu não por desacreditar da citação, mas porque achou inusitada a comparação de sua figura com um gênio do tipo Einstein, da Vinci ou Shakespeare, ele não se sente gênio, nem sua humildade permite que se enxergue como um deles um dia.

Esse amigo, chamado Felipe, lhe é muito importante, ele teve uma grande sensibildade em perceber o brilho do garoto, além disso sempre tentou abriu seus olhos acerca do seu enorme potencial. O garoto, que antes achava um problema enxergar o mundo de uma forma diferente, acabou entendendo que essa era a chave e a razão dele ser especial, e esse dom é que garantiria a ele o poder de fazer coisas diferentes. Felipe parece ter surgido na sua vida com o objetivo de reafirmar e complementar aquela lição que Fátima havia lhe passado há dez anos atrás, quando o garoto ainda era uma criança e por isso mesmo não havia captado a dimensão de suas palavras.

Hoje toda essa história ainda permanece um pouco nebulosa na cabeça dele, mas tudo fica cada dia mais claro à medida em que caminha pela vida e recebe sinais, encontra amigos que lhe dão a certeza de que está no caminho certo, árduo, mas certo.

Recentemente apareceu mais um amigo no caminho do garoto, mas dessa vez não foi alguém que sabia de sua trajetória, seus conflitos, sua intimidade, foi alguém inesperado, mas que mesmo assim demonstrou uma percepção imensa, uma capacidade de notar além do que os olhos podem ver.

O garoto foi fazer uma prova de recuperação de determinada matéria na universidade, mas seu desempenho havia sido tão ruim naquela prova que ele resolveu conversar com o professor, Petrus, logo após terminá-la. Ele perguntou quando seria a prova final, pois a sua recuperação havia sido tão ruim que certamente não recuperaria nada, e precisaria da última avaliação. O professor calmamente checou as notas do aluno em sua caderneta e, para a surpresa do garoto, disse que ele nem precisava ter vindo fazer a recuperação, e muito menos precisaria fazer prova final, já estava aprovado com as notas que tirou nas provas regulares. O garoto ficou envergonhado com tamanha falta de atenção, temeu até que o professor o achasse relapso, mas este novamente o surpreendeu ao se mostrar bastante compreenssivo, deixando o garoto à vontade pra conversar sobre suas aflições.

O garoto poderia ter checado suas notas antes de ir fazer a prova de recuperação, constatado que estava aprovado e nem ter ido à universidade, mas ele foi, não se sabe se foi uma manobra do destino ou uma conspiração do universo, o fato é que aluno e professor precisavam se encontrar e ter aquela conversa. Desse modo o garoto aproveitou a abertura do professor e então desabafou sua dificuldade em acompanhar a turma da faculdade, queixou-se do seu rendimento baixo, da sua falta de concentração, expôs como se sentia inferior, em termos acadêmicos, aos colegas, colocou tudo pra fora, todas as angústias acadêmicas.

O professor já havia percebido que aquele aluno era diferente da maioria, ele disse ao garoto que desde o começo do semestre havia percebido que, diferentemente dos outros, ele não estava ali na universidade pra tirar as melhores notas ou disputar com os colegas pelo melhor currículo, ele não se comparava aos outros no sentido de superá-los e ser "o melhor" de todos. O garoto ficou surpreso pois não esperava que alguém o compreendesse, não achava que alguém -ainda mais um professor- encarasse com naturalidade o fato dele não buscar com avidez as maiores notas e colocações, que não tivesse a ambição do destaque e dos prestígio acadêmicos. Era inusitado, mas logo um professor entendia seu ponto de vista. Será que ele também possuia uma óptica diferente da maioria?

Depois disso o professor contou-lhe uma breve história, um outro garoto que estudara no melhor colégio que existia na sua época, cujos pais foram chamados pois o filho não acompanhava a turma, não assimilava corretamente o que lhe era ensinado. Esse outro garoto demorou muito a escrever, ele parecia muito distraído, sua avó o enchia de mimos, consideravam-no retardado. Pois bem, sabe quem era o tal "retardado"? Gilberto Freyre, o próprio.

Com essa comparação inusitada -que lhe fez lembrar de Felipe, com seus gênios incompreendidos- o professor dirigiu-se ao aluno dizendo que ele era diferente, tinha uma percepção distinta daquele grupo de alunos, pensava em outras coisas, tinha outras preocupações, e que por isso ele não conseguia se adaptar ao modelo que era dado naquela universidade. De fato ele não conseguia se preocupar vorazmente com as notas e com o currículo em si, como os outros faziam, mas por outro lado tinha o poder de enxergar o que muitos não conseguem ver, preocupados com notas e números, diplomas e hancking, esquecem o essencial.

Por fim o professor disse ao garoto que ele não estava ali por acaso, que ele tem um belo trabalho pela frente e que com sua sensibilidade saberá tratar seus pacientes como nenhum outro, que todo o sofrimento pelo qual ele está passando e já passou não foram em vão, terão bastante serventia pra que ele possa entender o sofrimento de seus pacientes no futuro. Ele pediu que o garoto não se cobre tanto, e disse isso várias vezes, falou também que toda sua vivência lhe acrescentará um conhecimento que não se avalia com notas nem números, que sequer é ensinado em sala de aula.

O garoto abraçou o professor, o amigo, o mensageiro, e foi embora. Certamente ele não saiu daquela sala a mesma pessoa, possivelmente ele aprendeu bastante com aquela conversa, e com todas as outras que se antecederam, à cada dia esse garoto conhece um pouco mais de si, aprende um pouco mais sobre o que é capaz. E assim ele vai vivendo, esperando sinais, olhando o mundo da maneira que sabe, diferente da maioria, sim, mas nem por isso de uma forma errada ou digna de vergonha.

Hoje o tal garoto brilhante sabe que pode ser ele mesmo, e o é, sem medo, sem vergonha, ele está aprendendo a lidar com isso tudo, e saberá logo, logo, utilizar sua visão de mundo da melhor maneira possível.

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O que o dinheiro não compra


O que o dinheiro não compra


Estava se sentindo só na vida, no mundo, na sua casa. Estava deprimida. Sentia no peito um aperto, uma angústia sem tamanho nem razão de ser. Queria aliviar aquilo tudo mas não sabia como, não sabia o que fazer. Então pegou a bolsa e a chave do carro, foi fazer compras no shopping pra tentar se acalmar, se compensar, era a forma que conhecia de distração.

Comprou sapatos, mesmo sem ter pra onde sair com eles, há meses que não saía de casa pra festa alguma. Também comprou alguns tênis que estavam em promoção, mesmo odiando usar tênis, mas afinal estavam em promoção. Comprou bolsas, brincos, colares, colares bregas que jamais teria coragem de usar. Comprou um biquini minúsculo que prometeu usar logo após perder seus cinco indesejáveis quilos em excesso. Comprou também vestidos, uma saia, dois shorts, blusas, lingirie, nem tinha namorado pra mostrar a lingirie nova, nem ficante, nem paquera, nem nada, mas comprou.

Depois de uma tarde inteira batendo perna ela se cansa e vai pra casa, pede ao porteiro que lhe ajude a subir com tantas sacolas. Largou tudo na sala, pegou um copo, botou uma dose de whisky, tomou com dois comprimidos de rivotril e jogou-se na cama. Dormiu. E nem sequer abriu as sacolas. Comprou tudo que o dinheiro lhe permitia, mas o que realmente queria comprar não pôde, a felicidade.

[Mente Hiperativa]

quinta-feira, 14 de julho de 2011

[LUTO]

[LUTO]

Luto pelo meu primo Raulzinho e pelas outras 15 pessoas que estavam à bordo do bimotor que caiu na praia de Boa viagem.

Sinto que nenhuma palavra será capaz de acalmar o coração de uma mãe que enterra um jovem filho.

[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Entrego o jardim aos cuidados da natureza, cansei!


Entrego o jardim aos cuidados da natureza, cansei!

Eu nao me justifico mais, não me explico, deixo que pensem o que quiserem de mim...

Hoje eu não perco mais meu precioso tempo tentando explicar os fatos que se relacionam a mim, nem buscando a compreenssão dos outros quanto às minha condutas - muitas vezes nada ortodoxas -, até porque seria uma longa história, um longo bate-papo, até porque muitos não querem nem saber, a esses pouco importa minhas justificativas, até porque eu não tenho mais paciência pra isso... Pouco me importa o que pensam e dizem ao meu respeito.

Sendo assim, eu deixo o terreno da minha reputação ao relento, que nasçam ervas-daninhas, ou plantas frutíferas, floridas, deixo que cada um que lance as suas sementes, o jardineiro aqui está de greve, eu cansei de limpar o terreno, colocar inseticida, adubo fertilizante, plantar mudas e continuar calado. Eu desisto do jardim, e sei que ninguém vai cuidar dele pra mim, entrego-o à própria sorte, em meio à ervas e belas flores. Espero que ele dê bons frutos sem os meus cuidados, o jardineiro pede aposentadoria, ele não aguentou tomar conta do próprio jardim, agora entrega-o à natureza do jeito que o recebeu.

NOTA: Lembrei-me do filme O Jardim secreto, é antigo, mas é extremamente fantástico e assim como no texto, o jardim do filme reflete o estado de espírito dos 'donos', ou 'frequentadores' do jardim.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 12 de julho de 2011

Coma brigadeiro à 1h da madrugada


Coma brigadeiro à 1h da manhã

Era 1h da madrugada e ele decidiu fazer brigadeiro de panela. Estava conversando com uma amiga no msn e ela logo atesta a sua loucura "seu doido, brigadeiro à essa hora? É 1h da madrugada!". Mas qual o problema de ser 1h da madrugada??? Por acaso essa hora carrega alguma maldição ou má-crença com relação aos brigadeiros de panela? Porque o preconceito com a '1h da manhã'? Ele não conseguia entender o porquê das pessoas acreditarem que 1h da madrugada não era hora de fazer brigadeiro, enquanto 6hs da tarde ou 8hs da manhã seriam, nesses horários elas poderíam fazer brigadeiro tranquilamente, sem serem encaradas com espanto e estranheza.

Nessa hora ele lembrou de sua mãe, ela é dessas pessoas bastante regradas que tem horário pra tudo, é impressionante. Ela tem hora pra acordar, bem cedinho, mesmo que não tenha qualquer compromisso no dia seguinte, tem hora pra comer, hora pra sair de casa, pois estabeleceu pra si mesma que a partir de determinada hora ela não sairia mais de casa, a não ser em casos excepcionais, pois no cotidiano ela respeita a regra que criou. Ela tem horário pra tudo mesmo, pra ver TV, ir à padaria, tomar banho... Mas o mais incrível é que ela é feliz assim, cheia de horários, no entanto por conta disso ela jamais soube o que é comer brigadeiro à 1h da madrugada.

Pois bem, depois de lembrar da mãe ele foi à cozinha e preparou seu polêmico e delicioso brigadeiro, mesmo sendo 1h da madrugada. Depois de se fartar com aquela delícia-da-madruga e usufruir de um prazer atípico que sua mãe (e dois terços da população mundial) jamais souberam como é -afinal pensam que 1h da madrugada não é hora de fazer brigadeiro- ele foi dormir tranquilo, sem ter desrespeitado regra alguma. Pois é, as regras só valem pra quem as cria e na cabeça dele a única regra era ser feliz, seja de 6h da tarde, 9 da manhã ou 1h da madrugada, se tinha vontade de comer brigadeiro ele fazia e pronto, sem nem olhar o relógio.

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Eu não ando em linha reta, nem em círculos, mas em espiral!

Eu não ando em linha reta, nem em círculos, mas em espiral!


Eu estava sentado, ali na pedra que fica no meio do caminho, ou seria o caminho que fica no meio da pedra?

Enfim, eu estava ali sentado, pensando na vida, tentando entender o porquê de eu andar em círculos, andar, andar, andar e me ver sempre no mesmo lugar, com as mesmas questões, inacabadas, martelando no meu juízo. Por que minhas metas não se realizam? Por que os meus objetivos eu não alcanço? Por que tudo me parece tão difícil? Por que tanta complicação?

Pensando bem, eu não dou voltas pelo mesmo caminho, eu não permaneço no mesmo lugar, não, é ilusão minha, hoj eeu percebi isso. Pense comigo, quem disse que um homem passa duas vezes no mesmo lugar? Certa vez ouvi que ao percorrer um rio pela segunda vez, nem você, nem o rio são o mesmo. E é verdade, aqui, sentado na pedra do meu caminho eu percebo que aparentemente estou no mesmo lugar, mas analisando com atenção eu concluo que eu não sou mais o mesmo que sentou aqui outrora, não sou mais aquele, nem a pedra é a mesma daquela volta. Isso mesmo, as coisas mudam, as pessoas também, as situações se modificam, e sobretudo a nossa concepção diante das nossas vivências se alteram. Somos plásticos!

Por isso, ainda que persistam os mesmos problemas, hoje eu pude notar que EU não sou mais o mesmo diante deles, durante essas voltas que dei eu ganhei maturidade, repensei posturas, tomei atitudes diferentes, errei, reparei, acertei, hoje eu tomo uma postura distinta daquela que a tomava outrora. Por isso eu constatei, mesmo que eu dê voltas eu não permaneço no mesmo lugar, não, eu estou andando, crescendo, expandindo, evoluindo, mesmo que isso não seja tão claro e evidente.

[Mente Hiperativa]

domingo, 10 de julho de 2011

Ganhei um "Tag". E agora o que faço? É de comer?

Ganhei um "tag" e não sabia o que fazer. O que lee come? Ah, a pessoa que deu o presente, Monnie, mandou as instruções:

Primeiro a gente divulga a pessoa que nos presenteou: Monnie Lobo.
Depois postamos 10 fotos que representem as coisas que nós mais gostamos.
E por fim repassamos o tag à 10 pessoas, espero que elas deêm continuidade.

Aí vão algumas coisas que adoro nesse mundo, pena que só podem dez:


A vida - Apesar dos percalços, apesar das dificuldades, apesar dos problemas, a vida é o nosso bem maior, e eu a amo assim mesmo.


Minha família -São meu porto seguro, amo, amo, amo demais. A foto não contém todos, não caberiam numa só foto, mas estão muito bem representados pela minha vó, meu tio, minha mãe e meu pai, no meu batizado:

Meus amigos - Também não estão todos nessa foto... Amo-os demais, estão comigo nos momentos bons e ruins, me apóiam, me questionam, me amparam, comemoram comigo minhas vitórias e choram comigo minhas decepções.



Minha liberdade - Ah, como eu adoro ser livre, autônomo, poder ir e vir, fazer o que quiser, sem amarras, sem cobranças, sem rigidez ou obrigações que me prendam. Se eu me sentir preso eu morro, adoro minha liberdade.

Minha loucura - Como eu sou feliz me permitindo ser um pouco doido, um doido do bem. Mostrar o louco que há dentro de você traz um alívio, você se livra de um peso enorme ao parar de forçar sua 'normalidade' e tentar parecer uma pessoa 'normal' o tempo todo.


Minha (futura) profissão
- À cada dia que passa e eu me aproximo mais da minha profissão eu me sinto mais realizado em poder saber que estou sendo útil, que estou fazendo algo de bom, meu papel, garantindo o alívio do sofrimento, ajudando. Claro que nem tudo são rosas, mas o bom esterco (as dificuldades que encontramos no caminho) serão o adubo da boa colheita.

Os filmes - Pra mim não há programa que eu adore mais do que assistir a um bom filme, pode ser deitado no sofá comendo pipoca, ou no cinema com os amigos, ou bem acompanhado a dois; pouco importa,é só escolher o filme e começar a sessão.

O chocolate - Não existe doce que eu adore mais, e pode ser ao leite, preto ou branco, tanto faz, eu como todos, e como muito... E se der enxaqueca eu tomo remédio. Mas não deixo de me fartar nessa delícia, deixo não.
A música - Quem me conheçe sabe que eu não saio de casa sem um fone no ouvido, escutar música pra mim é como respirar, me acalma, me anima, me distrai, me preenche.

Os livros - Outra paixão que tenho é ler, adoro ler, sempre que posso e tenho um tempo livre estou com um livro na mão, e muitas idéias na cabeça.

NOTA:

Repasso o tag para:


*Aline, do Relicário

*Sibele, do Palavras ao vento

*Camila, do Ninguém disse que seria fácil...

*Dayanne, do Confidente aprendiz

*Wanderley, do novas estações

*Hugo, do Katamigos

*Marly, do Mensagens abençoadoras!!

*Bruni, do segredo da rosa azul

*Dário, do Dariurtz

*Annaraí, do La vie est drôle

[Mente Hiperativa]

Modéstia


Modéstia

Texto do Wanderley Elian. Wanderley, faço minhas as suas palavras.

Quando eu morrer,
grite
chore,
descabele,
tente se jogar na
cova,
leve um cravo de
lembrança.
Afinal...
o mundo
nunca
mais
será o mesmo.

[Mente Hiperativa]

sábado, 9 de julho de 2011

O lugar da minha infância


O lugar da minha infância

Aviso: Esse texto é altamete nostálgico e de conteúdo essencialmente auto-biográfico.

E toda vez que eu vou lá eu analiso bem aquela sala, eu conheço bem aquela sala, é a mesma sala que eu corria quando criança, e faz tempo... Quando entro ali eu não vejo só uma mesa de centro, um conjunto estofado e uma estante enorme, vejo a mim e a meus primos, vejo meus tios e tias, minha mãe, minha vó, meu avô, todos distribuindo os presentes de natal, os natais aconteceram ali por um bom tempo, durante toda a minha infância.

Eu vejo naquela sala a minha família toda almoçando num dia de domingo, o almoço gostoso que vovó fazia (e ainda faz), a acomodação se dava na base do improviso pois não cabia todo mundo na mesa da sala de jantar. "Xispa daqui, guri, primeiro os adultos", gritava minha tia baixinha e braba com seu sotaque carregado, gauchês, e seu espírito autoritário/coordenador, típico de filha mais velha. A criançada já sabia das regras, e sempre aguardávamos vovô e companhia comerem pra depois irmos pra mesa. E ainda assim não cabia todos os adultos na mesa de uma vez só, alguns sentavam no chão da sala, comiam na mesa de centro vendo TV, outros no sofá.

Mas isso é família grande, família unida, família feliz, pensa que alguém se importava em comer no chão ou no sofá? Claro que não, ao contrário, eram os melhores lugares pois era onde tinha mais bagunça e gritaria. E nessas reuniões de família tudo era motivo de alegria, risadas, "refestelo", como diz minha mãe. O barulho tomava conta e só dava trégua na hora em que vovô ia se deitar após o almoço, ninguém ousava subir o tom da voz, "shhhhhhhhhh, cala a boca que teu avô tá deitado", era o que ouvíamos se fizéssemos algum barulho.

Quando eu entro naquela sala eu vejo logo a mesa de centro, ela ainda se mantém lá, há quase trinta anos (mais velha que eu!). Depois vejo o sofá, que também é o mesmo, de fato ele foi reformado algumas vezes, trocaram o enchimento e o revestimento, mas ele não me engana não, é o mesmo sofá que eu tanto sentei por anos e anos, toda noite, todos os dias.

Quando eu olho as pranchas da sala eu vejo os enfeites de plástico, de vidro, de barro, são os mesmos, alguns são lembranças de viagens "estive num-sei-aonde e lembrei de você", a maioria são objetos sem qualquer valor agregado, sem sofisticação alguma, mas com um valor sentimental inestimável. Também tem os porta-retratos que parecem nunca ter sido renovados, as fotos são antigas, bem antigas, mas continuam adornando a sala e enchendo-a ainda mais de lembranças.

Outra parte que gosto bastante é a sala de jantar, afinal é lá que tudo acontece. Ela é bem simples, só tem uma mesa grande que é a mesma de quando eu era criança, só ganhou um tampo novo, de pedra, e um armário bem alto embutido na parede. As paredes são revestidas com um azuleijo florido azul, que me lembra tanta coisa... Tantos momentos que eu vivi ali e estava olhando para aqueles azuleijos, tantos aniversários comemorados ali naquela mesa, naquela sala de jantar, com bandejas de docinhos que vovó fazia na véspera, à mão (não se comprava em delicatessen como hoje), com bolas que nós mesmos enchíamos, com os vizinhos que íamos chamar batendo na porta, meu Deus, isso não existe mais... E não faz tanto tempo assim, isso foi há uns 15 anos atrás.

Tive a sorte de ainda pegar o tempo de brincar com os "amigos do prédio", com os "amigos da rua". O térreo do prédio tinha uma área de terra e era lá onde os garotos se juntavam pra jogar bola de gude, futebol, subir no pé de manga... Além disso nos juntavamos na casa de um e de outro pra brincar de imagem e ação, lego, playmobil e video game. Quando eu estava na casa de algum vizinho e dava a hora de voltar pra casa, pra jantar e tomar banho, mainha gritava da janela pelo meu nome, e eu gritava de volta "só mais dez minutos, mãããe". Se ela deixasse eu ficava mais 10 minutos, mas depois voltava logo, senão levava chinelada e ela não me deixava descer no dia seguinte, ficava de castigo em casa.

Faltou falar da cozinha, a cozinha mudou bastante, alguns aparelhos mudaram, outros chegaram, mas a cozinha sempre foi bem apertada por isso algumas pranchas ajudaram a criar um espaço extra que não existia no meu tempo de criança. Mas basicamente é a mesma cozinha, os talheres e potes ficam no meeeesmo lugar de sempre e eu conheço onde fica cada coisa. Lembro de tantas vezes que fiquei ali sentado no chão da cozinha, raspando a panela da cobertura do bolo que vovó havia feito. Outras vezes eu ficava lá conversando com vovó, ou quando mainha estava estressada, ou quando eu estava de castigo, ia pra cozinha e ficava quietinho ali sentado no chão enquanto vovó lavava a louça e organizava tudo. Hoje é a mesma coisa, acabado o almoço ela vai lá organizar tudo, mas eu não tenho mais tempo de ficar lá sentado no chão fazendo companhia a ela.

Aquele apartamento me inunda de lembranças, conheço cada lugarzinho dele, cada porta empenada, cada rachadura das cerâmicas do chão, tenho todas mapeadas na minha cabeça, sei de todos os defeitos, conheço o 'jeitinho' de abrir cada porta ou janela sem que emperrem ou façam barulho; conheço esse apartamento como a palma da minha mão.

O banheiro social, esse eu sempre achei estranho pois duas paredes dele têm azuleijo marrom escuro, é uma cor estranha de se usar na parede.

Eu sei o lugar onde se guarda cada coisa, desde o guardanado novo até o enfeite de natal que só é tirado uma vez por ano. E os enfeites de natal, diga-se de passagem, em boa parte ainda são os mesmos de quando eu era criança, mudou a árvore, diversas vezes, e se acrescentou alguns enfeites, mas muitos têm anos e anos, e muita história pra contar.

Eu acompanhei cada mudança daquele lugar, que foram poucas, cada grade que foi colocada, a mudança da TV, do microondas, da estante da sala, das mesas do terraço, tudo eu vi de perto. Eu sei que pra fechar a janela do terraço é preciso suspendê-la levemente pra não fazer aquele barulho estridente e a porta do armário do quarto de costura de vovó só fecha com a chave, trancando. Também sei que a chave do quarto de vovô abre também o quarto de costura.

O tal quarto de costura ainda existe, e no meio dele há uma mesa grande com a máquina de costura de vovó, é uma mesa própria pra máquinas de costura que talvez nem exista mais hoje em dia, ela se abre e a máquina "mergulha nela", ficando embutida, oculta. As paredes desse quarto podem até ter ouvidos, mas seguramente não tem boca pois se pudessem falar o que já ouviram... Era lá que ocorriam as reuniões pós-almoço, alguns ficavam na bicama, outros no chão, nas almofadas, nos banquinhos ou na cadeira de balanço, mas todos se acomodavam de alguma forma. E tome conversa, e risadas. Ah, lá também ocorriam as trocas de presentes, sempre tinha uma tia que chegava com uma sacola de presentes, "repasses", ou encomendas, e era lá que se fazia a distribuição, no quarto de costura.

A última parte do apartamento que eu passo é o terraço, ele sempre foi meio vazio, talvez por ser pequeno, estreto, mas era lá onde eu brincava, gostava de espalhar todo meu lego, guardava-o numa maleta bem grande, então lá eu espalhava-o no chão e montava mil coisas. Quando era guri às vezes mainha me botava de castigo lá no terraço, e eu também me sentava lá na cadeira quando estava triste e queria ficar sozinho, pensando. Lá eu criei alguns hamsters, soltos que corriam pra lá e pra cá. Mainha não gostava nem um pouco deles no começo, mas depois passou a cuidar mais do que eu e se apegou tanto que quando morreram não quis mais. Aí eu resolvi 'criar' cactos e estes cresceram, cresceram, cresceram até que tivemos que plantá-lo lá em baixo na área comum do prédio.

É apenas um pequeno apartamento, não sei como cabe TANTA lembrança em tão pouco espaço. Esse texto é só uma pequena amostra do que recordo quando entro lá, é como um iceberg que só mostra a pontinha, a maior parte fica oculta pela água fria.

Nota: Faltou relembrar a cena clássica do meu avô, gaúcho, à mesa falando para os netos: "Vocês são tudo uns nordestinos, bah, comem até macarão (ele pronuncia com um r mesmo) com farofa." Eu rio muito quando lembro disso...

[Mente Hiperativa]

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Brincando com o fogo


Brincando com o fogo

Um dia, há bastante tempo, eu resolvi brincar com o fogo. E viciei. À princípio foi um pouco amedrontador, confesso, além disso quando senti a dor da queimadura eu sofri. Sofri, mas me recuperei, e logo estava lá na beira do fogo novamente, brincando, desafiando-o incansavelmente.

Tornou-se então a minha sina, brincar com o fogo.

Quem já brincou com o fogo sabe o que digo, conhece a sensação que dá, de medo, de prazer, mexe com o ego, é um desafio, um duelo de poder. Pra quem ainda não brincou eu deixo uma expressa advertência: é viciante!

Eu sou viciado em brincar com o fogo e quer saber, faz muito tempo que não faço mais xixi na cama por conta disso, perdi o medo faz tempo...

Quem experimentou a vida intensamente, e pegou gosto por isso, não sabe mais viver no limiar da mediocridade. É preciso fortes emoções, é preciso muito fogo. Quem experimentou do fogo não sabe mais viver sem ele.

Por isso que venha o fogo, e que não venha brando pois assim eu o apago, pensando melhor eu jogo é gasolina pra poder ver suas chamas aumentarem diante dos meus olhos.
Música:



Fogo - Capital inicial

(Uuuu...)
Você é tão acostumada
A sempre ter razão
(Huuum...)
Você é tão articulada
Quando fala não pede atenção

O poder de dominar é tentador
Eu já não sinto nada
Sou todo torpor

É tão certo quanto calor do fogo
É tão certo quanto calor do fogo
Eu já não tenho escolha
E participo do seu jogo, participo

Não consigo dizer se é bom ou mal
Assim como o ar me parece vital
Onde quer que eu vá o que quer que eu faça
Sem você não tem graça

(Uuu...)
Você sempre surpreende
E eu tento entender
(Huum...)
Você nunca se arrepende
Você gosta e sente até prazer

Mas se você me perguntar
Eu digo sim, eu continuo
Porque a chuva não cai
Só sobre mim

Vejo os outros,
Todos estão tentando
e é tão certo quanto calor do fogo
Eu já não tenho escolha
E participo do seu jogo, participo

Não consigo dizer se é bom ou mal
Assim como o ar me parece vital
Onde quer que eu vá e o que quer que eu faça
Sem você não tem graça

É tão certo quanto calor do fogo
É tão certo quanto calor do fogo

Eu já não tenho escolha
Eu participo do seu jogo

É tão certo quanto calor do fogo
É tão certo quanto calor do fogo

Eu já não tenho escolha
Eu participo do seu jogo, do seu jogo.


[Mente Hiperativa]

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Andando em círculos


Adando em círculos

Eu me encho de promessas, faço planos, crio metas, invento cronogramas e listas de coisas a fazer, atitudes a tomar e costumes a aniquilar de minha vida. Me endivido comigo mesmo e como se isso fosse possível ainda fico me devendo. É sempre assim, eu passo o "calote" em mim mesmo. Sou o devedor confesso e o emprestador indignado, que ingenuamente ainda espera receber a tal quantia prometida que nunca vem.

Eu me enrolo no meio do caminho, não sei o que acontece, os planos naufragam como um barco furado, as metas viram flechas que me acertam e as promessas, essas são esquecidas, abandonadas, se perdem no vento como a fumaça de um cigarro. E assim nada muda, e eu retorno ao princípio. Tudo de novo.

Eu já nem comento mais com ninguém, já não divido minhas angústias, já não falo das doenças psicossomáticas, já não mostro a tristeza em meu rosto, simplesmente finjo que está tudo bem. Não há o que fazer, ninguém merece me ouvir, de novo a mesma ladainha, ninguém aguenta ver o outro andando em círculos, sem sair do lugar. Eu tenho bom-senso, sei que ninguém aguenta, nem eu mesmo aguento olhar pra trás e ver as voltas que já dei. E estou no mesmo ponto de partida. Será que agora vou dar partida pra mais uma volta?

[Mente Hiperativa]

Transparência


Transparência

Texto do meu amigo Paulo Francisco, falando de amor.

Já amei em segredo. Hoje não mais. Meu amor é escancarado. Quando amo confesso. Estou mais sem vergonha, mais descarado para o amor. Sei que o não já existe em tudo e, o que tenho que fazer é vencê-lo com um sim. Nunca aceito um talvez. O talvez, pra mim é um não disfarçado. Não perco tempo com a incerteza. Prefiro o sim, mesmo que ele se transforme depois num não. Pelo menos tentei.

Se quero, digo. Não permito rodeios quando a questão é o amor. Não existe meio amor, meia paixão. Estes sentimentos quando vem, vem por inteiro, como chuva de verão, de uma única vez, sem promessas e pequenos avisos e nos deixa encharcados de felicidade.

Ele pode até estar embrulhado no papel de Sonho de valsas que desenrolamos com a delicadeza de um artefato sagrado. Sabemos com certeza da existência de um bombom redondo, com uma camada fina de chocolate e um biscoito crocante cheio de açúcar e aroma.

O amor é como um bombom desejado que derrete em nossa boca e envolve a nossa língua na mais pura calda de sentimento – quente, cheiroso e úmido. Comemos salivando, sentimos descer numa deglutição lenta, quase num slow motion.

Guardamos o papel brilhante, como prova que devoramos o mais gostoso dos sabores. Guardamo-los dentro de cadernos ou livros. Guardamo-los aberto como se quiséssemos preservá-los por inteiro. Papel brilhante de bombom entre páginas de um livro é registro de presente amado; é afeto em rosa e preto; é marcador de um capitulo sem fim.

Ontem ao pegar um livro na estante, datado de algumas décadas atrás, encontrei em cada capítulo um marcador em preto e rosa. Sorri. Foi um sorriso lento de passado. Deixei-os lá, nas mesmas páginas, intactos, brilhantes, vivos.

Já amei em segredo. Hoje não mais. E os livros que leio registram apenas minhas digitais. E os sonhos acompanhados com vinho são devorados em valsas de noivas, deixando no ar aromas derretidos em paixão.


[Mente Hiperativa]

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Isso é esperança


Isso é esperança

Eu tenho esperança de que as coisas possam mudar, que melhorem daqui pra frente. Talvez as transformações ocorram num passe de mágica, embora eu ache que precisam de algum esforço; "algum" pra ser otimista, pra não ter que encarar o peso da palavra "MUITO" ao lado de "esforço".

Mesmo diante das dificuldades que encontro pela frente eu procuro no asfalto quente e inóspito da vida algum sinal de que me leve a pensar que há esperança, me debruço então pra vê-la nascendo de perto, uma flor que brota do chão é o sinal de que as coisas podem mudar, de que na verdade já começaram a mudar. Era o que eu precisava pra crer nas melhorias.

Gostaria de poder ficar ali cuidando daquela flor, de poder regá-la, colocar adubo pra que ela cresça forte, queria protegê-la até que ela pudesse se criar sozinha. Mas não posso, tenho que partir, tenho que dar seguimento à minha vida e não posso levá-la comigo, preciso deixá-la ali onde brotou, exatamente ali.

Sendo assim eu vou embora, deixo a delicada flor da esperança pra trás, espero que ela se cuide e brote pra vida, que cresça e se multiplique. A esperança é isso, é não poder fazer nada e ainda assim esperar que vai dar tudo certo. Eu espero que dê tudo certo com aquela flor que resolveu nascer em meio ao asfalto quente e inóspito, embora eu saiba que ao virar as costas e partir um carro pode ter passado por cima dela e a esmagado até a morte. Mas eu espero que não, isso é esperança.

Agora imagine no lugar da flor uma pessoa.
Nota: Talvez por isso digam que a esperança é a última que morre, pois quando não podemos fazer mais nada nós contrariamos a própria lógica, imaginando que num passe de mágica tudo vai dar certo, e assim seremos gratos e felizes.
O que se pode fazer por uma flor que nasce no meio do asfalto que não seja esperar que se finde sua breve existência? Mas não esperamos isso, contrariamos as expectativas do senso-comum achando que a mesma será salva, que se desviará dos carros e das diversas intempéries que lhe acometam ao longo da vida. Queremos acreditar que ela sobreviverá, pra sempre. Isso é esperança.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 5 de julho de 2011

Trocando de papel - o louco e o são


Trocando de papel

No começo o achava estranho, chamava-o por "doidinhho". "Como pode ser tão maluco?", "não tem um pingo de juízo", pensava ele a respeito do doidinho.

Com o tempo foi se aproximando e procurando entender a loucura do amigo doidinho. Aquilo tornou-se motivo de graça, ser louco parecia tão divertido que ele às vezes 'dava uma de louco' também.

E assim ele foi perdendo aquele medo inicial da loucura, foi aceitando-a como algo natural até que de tanto fingir e admirar o doidinho ele acabou louco como o tal amigo. Hoje é ELE que é encarado com estranhamento pelas pessoas 'NORMAIS'.

"Como pode ser tão maluco?", "não tem um pingo de juízo", comentam as pessoas a seu respeito, a respeito dele que de tanto procurar entender a loucura acabou ficando louco também.

E seu amigo, o doidinho, esse se curou, e hoje trata do amigo que enlouqueceu por admirá-lo muito de perto. O doidinho era louco, talvez ainda seja embora disfarce bem, mas seu amigo, coitado, é um doido varrido daqueles que depois de descoberto não tem mais remédio.

Nota: A loucura é implacável.

[Mente Hiperativa]