sábado, 29 de junho de 2013

A alternativa


A alternativa


Há algumas semanas apresentava sintomas persistentes, depois de alguns exames alterados descobriu-se grave enfermidade que poderia tirar-lhe a vida em curto prazo de tempo, caso não fosse medicada corretamente. Internou-se, portanto, para tratamento em caráter de urgência. Desde então sua rotina jamais foi a mesma, o sono passou a ser curto e entrecortado, seu organismo sofreu enorme desgaste e profundas olheiras de sofrimento passaram a tingir seu rosto. Além disso, os remédios fortes que tomava e o intenso cansaço lhe aguçavam ainda mais tal desconforto, as acomodações hospitalares também não eram nada acolhedoras. O clima frio tomava conta não só do quarto, mas de sua alma, e isso tornou seu prognóstico pouco animador.

Ao mesmo tempo em que tentava aceitar sua condição, observava com desgosto os tubos que lhe conduziam ar às narinas, lembrando-se que até o mês passado conseguia respirar enquanto agora se sentia incapaz até de fazer isso. Remédios eram oferecidos em intervalos rigorosamente cronometrados e provocavam reações adversas insuportáveis: dor de cabeça, de estômago, náuseas e mal-estar, entre outros. Os apitos constantes das máquinas já não incomodavam, havia se acostumado com toda aquela barulheira do mesmo jeito que também não se assustava tanto ao passar a mão na cabeça e se dar conta de que não havia cabelo, somente uma lanugem áspera a espetar a palma de sua mão.

Sua aparência não era das melhores, estava muito abatida e por isso evitava ao máximo se olhar no espelho, perdera a vitalidade e com ela a vaidade que tinha anteriormente. Estava muito magra, magra e desidratada, pois de vômito em vômito perdia líquido em demasia, apesar do soro que ingressava pelas suas veias. E como não bastassem as agulhadas quase diárias de coleta de sangue, a cada três dias trocavam o acesso venoso furando-lhe novamente noutro ponto do braço ou até mesmo da mão. Com o passar das semanas ficou parecendo uma peneira cheia de furos.

Seguiu essa nova rotina, dia após dia, sempre aguardando uma melhora que nunca se mostrava. E assim um novo esquema era implantado, uma nova fase, novos remédios, porém a cura nunca se fazia plena. Parecia até uma tortura medieval, mas os médicos asseguravam que era um “mal” necessário, o “único” caminho para assegurar sua saúde. Não lhe restava escolha senão esperar e se submeter à terapêutica convencional.

Às vezes tinha vontade de fugir dali, mas não tinha como fazer isso, não tinha nem forças. Queria desistir, queria ficar boa, queria... Queria que tivesse sido diferente. E a cada garfada de arroz branco e grudento com purê de batata sem gosto tentava esquecer tal realidade, comia com esforço, apenas esperava que aquilo acabasse logo e pudesse retornar à sua rotina boba de muito trabalho e pouco tempo livre. Pensou em se cuidar mais quando saísse dali, mas logo lembrou que teria muito trabalho acumulado e não poderia se dar ao luxo de deixá-lo em segundo plano.

Suportou até onde deu, sofreu com os remédios, se desiludiu com a falta de perspectivas e implorou por alguma outra saída para seu sofrimento. Sentia sua mente esgotar-se diante daquela rotina dolorosa, estava morrendo aos poucos apesar de tanto aparato à sua volta, de tantos cuidados e drogas. Diante disso, tomou uma importante decisão: iria voltar pra casa e aguardar pelo fim.

Levantou-se da cama arrancando os aparelhos de seu corpo como quem tomava posse de si novamente, mas ao colocar o primeiro pé no chão em direção à liberdade levou um enorme tombo e caiu num surto de fraqueza e tontura. Acordou na mesma cama, mas dessa vez acompanhada por uma enfermeira ao seu lado, segurando sua mão. A ela contou sua decisão de sair dali e aguardar o fim dos seus dias em casa, longe de aparelhos, injeções e pessoas vestidas impecavelmente de branco. Foi um choque pra toda a equipe de saúde, ninguém concordava com tamanha loucura de recusar-se à quimioterapia, seria um suicídio, um absurdo! No entanto nada podiam fazer além de argumentar contra a escolha daquela mulher insana que queria a todo custo morrer em sua residência. E como ninguém podia prendê-la, deixaram que ela fosse.

Após recuperar parcialmente sua vitalidade ela saiu do hospital e mudou-se para um sítio pouco afastado da cidade em que vivia, alugou por uma temporada uma bela e confortável casa onde se instalou por tempo indeterminado. Sabia que mais cedo ou mais tarde a doença a levaria embora, mas recusou-se a passar o fim dos seus dias vivendo artificialmente como quem luta com a divindade e sua imensa sabedoria. Levou alguns remédios, tirou uma boa quantia de dinheiro no banco e enfiou-se no meio do mato pra curtir o pouco tempo que ainda lhe restava de vida.

A nova vizinhança quase nada sabia a seu respeito, tampouco suspeitava que carregasse dentro de si uma bomba pronta pra explodir a qualquer instante - seis meses, segundo arriscaram alguns médicos mais pretensiosos. Preferiu que os vizinhos não soubessem de nada, não queria receber olhares de pena ou julgamento. O povoado que agora habitava era bastante receptivo de modo que ela logo fez amizade com a maioria deles, promovendo festas animadas em sua casa, com fartura de comida e boa música, ao vivo. Dançou muito, fez da vida uma eterna comemoração e experimentou cada dia como se fosse verdadeiramente o último. Aos fins de semana recebia parte de sua pequena família, o que fazia a festa dentro do seu coração ser ainda maior que o habitual.

Pouco mais de dois anos se passaram e a vida no campo parecia lhe fazer muito bem. Desde que saiu do hospital e se mudou ela adquiriu novos hábitos, mais saudáveis, passou a acordar bem cedo com o canto do Galo, se alimentava melhor, sorria bem mais do que na cidade. Todas as manhãs, ainda de camisola, ela ia até a sacada do quarto pra contemplar o nascer do sol e ouvir também o canto dos sabiás, bem-te-vis e outros pássaros cujos nomes desconhecia. Gostava de fechar os olhos e respirar pausadamente o ar puro enquanto o som das aves penetrava doce em seus ouvidos. Essa simples atitude fazia sentir-se viva a cada manhã, tão viva que às vezes até esquecia que dentro de si crescia uma massa maligna de nome impronunciável.

Depois de um banho morno de banheira e um café da manhã reforçado, descia até a horta pra cuidar de suas ervas, criava também galinhas de capoeira, patos e cabras. Não queria se ocupar com porcos, cavalos ou outros animais maiores, evitava qualquer trabalho pesado. Passava o dia executando pequenas atividades e apesar da doença levava uma vida normal. Entre uma tarefa e outra o dia acabava logo, mas não sem oferecer-lhe uma sensação intensa de prazer em estar viva. Esse passou a ser o seu tratamento alternativo.

Todos os dias ao cair da tarde ela sentava no balanço do jardim como quem realizava um pequeno ritual, tirava as botas e o chapéu jogando-os na grama, balançava ritmicamente enquanto admirava as flores cultivadas com tanto amor e carinho. A essa altura o sol estava alaranjado e pintava o horizonte em despedida, era a hora de agradecer por mais um dia de vida. Desejava fortemente que mais uma manhã pudesse vir logo adiante, lembrava de quando estava no hospital cercada por máquinas e canos invasivos, mas agora tinha o conforto da natureza ao seu lado. Contava com a cumplicidade da vida no campo pra perpetuar os instantes que ainda podia desfrutar.

Depois de sua reflexão diária se recolhia em casa e já vestida com seu pijama arrumava-se pra dormir, nunca tinha certeza se acordaria ou não, mas por via das dúvidas preferia dormir sempre bem penteada e bonita. O dia seguinte seria festa e os vizinhos já sabiam que encontrariam muita alegria na casa daquela jovem senhora, tão feliz que ela era. Parte da comida já estava pronta na cozinha, as roupas haviam ficado penduradas no varal lá fora pra que o vento da noite as secasse. Algumas flores recém-colhidas adornavam os vasos da sala e perfumavam o ambiente. Ela soprou firmemente as velas, fez o sinal da cruz e se cobriu em mais uma noite fria. O som dos grilos e das rãs quebrava o silêncio. Ela cruzou as mãos em cima do peito e fechou os olhos, apagando na imensidão escura da noite.

[Mente Hiperativa]

terça-feira, 25 de junho de 2013

Re-encontro



Re-encontro

Depois de quase três anos o destino nos colocou outra vez cara a cara, dando-nos assim uma chance de reforçar laços já enfraquecidos pelo tempo. Ao revisitar teu apartamento enxerguei-me marcado em cada uma de suas paredes, como se por acaso pedaços de mim tivessem ficado ali, impregnados nos lençóis do teu quarto, em meio às garrafas vazias que sobraram de nossas farras. Eram os destroços sobreviventes da nossa relação a qual ainda guardo como boa lembrança daquele tempo.

Ao adentrar novamente no seu lar – e na sua vida – observei atentamente cada centímetro quadrado e constatei que pouca coisa mudou desde a última vez que estive ali: os quadros são os mesmos e permanecem na mesma posição, as esculturas no chão e nas mesas, origamis pendurados por cordões de lã, xilogravuras, quase nada foi mexido de lugar, até as fotografias ainda são as mesmas. Apenas um jacaré de cerâmica ‘habita’, agora, um canto da sala. E fico a imaginar que tipo de amigo te deu essa peça nova. À minha inspeção não escapou teu rosto, que sustenta o mesmo sorriso lindo de antes, apenas um ou outro cabelo branco pareceu-me novidade e ainda assim te conferiu um ar mais maduro, um charme adicional. Teu corpo também não ficou devendo nada ao tempo, está em plena forma.

Deitamos no sofá pra conversar, o mesmo sofá que nos aconchegou tantas e tantas vezes. Ah, se ele falasse teria muitas histórias boas pra contar, pois assunto nunca nos faltou. Não pude deixar de notar de imediato seu novo revestimento estampado de pássaros voando em direção aos galhos de uma árvore. Mas felizmente continuava sem poder contar nossos segredos. Repousamos, então, em seus galhos esperando que os pássaros viessem dar asas às nossas mentes. Assim, viajamos mais uma vez em longas e intermináveis conversas.

A tarde correu e em meio a um assunto e outro nos acomodávamos como podíamos naquele sofá pequeno, tu se aninhava em meu peito pedindo proteção e eu achava aquilo bom demais. Fiz carinho no teu cabelo ao mesmo tempo em que varri o ambiente com meus olhos, afinal precisava me certificar de tudo que mudou, ou ter certeza de que estava tudo como deixei. Notei a velha bagunça de sempre na mesa da sala, os papéis espalhados, as pilhas de CDs e os marcadores de livros, um prato com uma generosa fatia de pé de moleque e uma empada de camarão estavam cobertos por um vidro. O computador, pequenas estátuas e um catálogo de moda pareciam esquecidos no chão, mas eu sabia que era mania sua deixá-los ali.

Enquanto você se remexia e se acomodava nos meus braços eu continuava minha exploração visual pela cozinha: azeites, pimentas, castanhas-do-Pará, geléias e vodkas. Tantos outros ingredientes que um desavisado pensaria que és chef, mas a mim você não engana, te conheço e sei que mal sabes cozinhar. Um cheiro forte de canela vinha da cozinha e incensava a sala enquanto o vento corria de janela a janela e nós conversávamos coisas sérias ou bobagens.

Em meio ao papo perguntei disfarçadamente quem havia te presenteado com aquele jacaré e você disse que tinha comprado numa feira de artesanato na ilha de Marajó. Preferi acreditar a imaginar outras coisas, mas você conhece meu jeito desconfiado e na tentativa de dissimulá-lo sugeri que colocasse uma de suas playlists pra tocar. De imediato você foi ao quarto atender meu pedido e logo me chamou, mordendo a isca em cheio. Quando abri a porta senti o vento frio do ar-condicionado a nos esperar, a cama baixa nos atraía enquanto o edredom reforçava tal convite. Vi tuas roupas espalhadas pelo chão, amassadas dentro de uma mala entreaberta e jogadas no cabide. Pensei por um instante que eu tão organizado jamais me adequaria à sua imensa capacidade de bagunçar tudo; tinha medo, inclusive, que acabasse bagunçando minha vida. Tratei de apagar a luz pra esquecer tudo o redor, passei a te enxergar somente com as mãos, ao som da playlist #Tropicália.

Depois de inúmeras faixas de Rita Lee, Gil e Caetano, chegamos naquele momento em que tudo se esvazia dentro de si, procurando algum sentido que não faz qualquer sentido. A razão logo cedeu lugar ao prazer e a cama ficou pequena demais pra caber tanto sentimento, até que ao fim de tudo nossos corpos se reorganizaram no universo e se reencontraram no tempo e no espaço. E depois de tomar consciência da realidade, fiquei calado, de olhos fechados, apenas sentindo meu coração acelerado, a respiração profunda, tua pele ardendo junto à minha e aquela sensação de formigamento na Alma. Fechei os olhos, contemplei o instante, abri os olhos e vi o teto branco, depois vi você com um belo sorriso me esperando voltar do transe. Dormimos abraçados.

O dia amanheceu e eu precisava ir embora, logo mais você também ia levantar pra trabalhar, mas por enquanto fingia dormir pra não ter que me ver partir. Sinto que meu cheiro ficou impregnado nos teus lençóis. Escovo os dentes na pia do banheiro ao mesmo tempo em que massageio os pés no tapete colorido que você trouxe do Agreste. Me aproximo de ti e te dou um beijo, você não abre os olhos nem se mexe, mas sei que é porque odeias despedidas. Saio do quarto deixando nas paredes pedaços de mim e você sorri sem perceber que te espio do lado de fora, pela fresta da porta. Vou embora com saudade, não sei se volto amanhã, em uma semana ou se o destino nos afastará novamente por mais três anos. Só sei que guardo boas lembranças de ti, deixo também qualquer coisa boa em teu coração.

[Mente Hiperativa]

sábado, 15 de junho de 2013

Sítio solidão


Sítio solidão

Assisto o céu lá fora
desabar em chuva;
aqui dentro, confuso
emaranhado de ideias.

O ponteiro do relógio
marca segunda-feira.
E não sobrou amor
para o café da manhã.

[Mente Hiperativa]

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Lavar a alma com sal. E sol



Lavar a alma com sal. E sol

Resolvi me esconder na concha do tempo,
fazer pingar dos meus olhos gotas de silêncio.
Salgadas.
Mudas.
Meu choro não fala,
cala.
Assim como os tapetes velhos
e empoeirados,
às vezes eu preciso lavar minha alma
e colocá-la pra levar um pouco de sol.
E só.

[Mente Hiperativa]

domingo, 9 de junho de 2013

Subindo na vida



Subindo na vida
                                                                                                                             Capaz.
                                                                                                                      Me julgo
                                                                                                                Do que
                                                                                                            Mais
                                                                                                       Muito
                                                                                                Subir
                                                                                           Posso
                                                                                    Assim
                                     E paro pra descansar um pouco.
                            Da vida
                   Escada
          Subo a        
Às vezes

[Mente Hiperativa]

sábado, 1 de junho de 2013

Amo a vida


Amo a vida

amo a vida
a vida amo
amo vida a
vida a amo
a amo vida
vida amo a

[Mente Hiperativa]