sábado, 25 de outubro de 2014

A salvo da loucura



A salvo da loucura

Andava sempre atenta, olhando para os lados discretamente, parava num café e depois entrava numa loja, sem jamais repetir os lugares visitados. Procurava ser discreta nas atitudes e comentários, não queria chamar atenção, tampouco causar lembranças às pessoas. Reservava os óculos escuros apenas para os ambientes externos, pois aprendeu com o tempo que eles chamam atenção ao invés de cumprir seu propósito de disfarce.

Vivia perseguida pela sombra do medo, aterrorizada com a possibilidade de ser encontrada a qualquer instante. Colhia dados o tempo todo e os anotava pra criar sua nova história, retalhos de vivências alheias que via e ouvia pelo mundo a fora, precisava de uma identidade, de um passado ainda que fictício para usar nos diálogos essenciais e estritamente inevitáveis.

Em casa evitava olhar-se no espelho, não queria lembrar quem era de fato. A TV era sua companhia constante, até quando saía a mantinha ligada na opção mute. Silenciava o passado, construía lentamente um novo presente e não tinha qualquer certeza acerca do futuro.

Habitava a penumbra, andando cuidadosamente, pois qualquer pisada em falso poderia lhe custar a vida. Temia ser encontrada, caso o fosse teria que ajustar as contas com seu sórdido passado, aquele que evitava visitar até em pensamento.

Um belo dia foi dormir tarde da noite, exausta e pra sua surpresa e pânico acordou num hospício. Foi então que se deu conta de que seus últimos anos se passaram numa fuga de si mesma, presa numa clínica a enganar-se o tempo todo com artifícios torpes, disfarces tão loucos quanto a própria imagem de si mesma.

Descobriu de imediato, como quem encontra uma caixa antiga de fotos e se reconhece, que estava vivendo um incrível conto de fadas, com personagens, lugares e histórias que se repetiam diariamente, porém com outros nomes dados por ela. A lucidez, ainda que tardiamente, caiu em seu colo como uma bomba prestes a explodir.

E agora, o que faria da vida? Sem família, sem casa, sem trabalho, sem renda e COM lucidez? De que adiantava situar-se na realidade se nem ao menos poderia usufruir desse mundo feito apenas para os outros? Foi então que logo após melhorar da loucura entrou numa profunda depressão. E seus personagens, disfarces, fugas e fantasias caíram todos por terra, tornando-a uma pessoa apática, sedimentada numa cama como o velho leito de um rio.

Passou a não mais pronunciar as loucuras de antes, deixou de lado as perucas e lenços, os batons e óculos escuros. A vida trocou a fantasia pela morbidez de uma triste realidade, agora jaz numa cama olhando infinitamente para o teto branco e mofado daquele quarto nos fundos da clínica psiquiátrica. Sente saudade do tempo em que a loucura coloria sua vida com alguma esperança e, porque não dizer, felicidade. Mas não comenta isso com ninguém, não quer parecer uma louca.

[Mente Hiperativa]

5 comentários:

  1. A vida é o que pensamos e vemos dela. Até essa tal de realidade está sujeita às nossas subjetivas interpretações. O mundo é dos loucos etc

    ResponderExcluir
  2. Nossa!! Triste sanidade...

    O texto é muito bom. Que ironia...

    ResponderExcluir
  3. Poxa! Boquiaberto! Que texto contende ao extremo, interessante atmosfera psicológica que o ambientou que leva a uma profunda reflexão e muitos questionamentos. Adorei! Vou embora pensando, calou fundo.

    ResponderExcluir
  4. Não sabia como entrar em contato, então resolvi deixar um comentário. Espero que você veja: Estou voltando :)

    ResponderExcluir

Deixe sua opinião: