domingo, 21 de agosto de 2011

Refém da própria vida


Refém da própria vida

Desde sempre soube que não tinha nascido pra isso, torradas quentinhas recém-saídas da torradeira, crianças assistindo desenho animado na sala, fazendo bagunça, sua esposa preparando ovos fritos, que estalavam na frigideira... E sua cara apática, gélida, pálida, seu olhar fixo no relógio, seguindo os ponteiros, tentando em vão rebubiná-los, cada segundo que passava, um segundo a menos, e os ovos a fritar, e a esposa a cantarolar, uma felicidade que chegava a irritá-lo, e as crianças gritando na sala... Que vontade de gritar!!! Vontade de gritar, de pular, de explodir, de... Sei lá, de botar pra fora toda essa energia acumulada por anos e anos.

Mas permanecia ali sentado, estático, sem ação, faltava-lhe a centelha que insistia em não vir. 'Amor, os ovos fritos vão esfriar, coma logo' - dizia ela, de forma tão amável- 'o que você tem hoje? Parece tão pensativo'.

Ele permaneceu calado, encheu a boca de ovo frito e torradas. Depois foi trabalhar.

Ele era mais um refém da própria vida, vivia o dia-a-dia sobre pressão, com vontade de fugir, mas fugir de que? De quem? Da própria vida?

E por que não foge, então? O que lhe prende?

Sentia-se um claustrofóbico emocional.

Assim ia vivendo, angústia, sofrimento, pseudo-felicidade, orgulho da família, da própria vida, mentiras, fingimento. Suas escolhas fizeram dele algoz e vítima ao mesmo tempo, ele tem a chave que lhe tranca, mas hesita em fugir pois ele é o sequestrador e o sequestrado- ao mesmo tempo - é ele que toma conta pra ele não fugir do cárcere.

Hoje é mais um dia de domingo, dia de sair com a família, que tal ir ao shopping? Sua esposa adora essa programação dominical, adora mais ainda gastar o seu dinheiro com coisas fúteis, bolsas, sapatos que nunca vai usar, só se acumulam no closet, afinal eles quase não saem à noite desde que tiveram filhos. E por falar em filhos, eles também adoram ir ao shopping, sobretudo ao playstation e às lojas de game.

E ele? Será que ele gostava de ir ao shopping aos domingos? Será que alguém lhe perguntava isso? Ah, quem se importava com sua opinião... Além do mais precisavam de um motorista e de uma conta bancária generosa. E o que podia fazer? Ele era o chefe da família, ir ao shopping aos domingos eram os ossos do ofício...

De fato ele tinha avida que tinha porque optou por ela, mas sempre soube que não nascera pra isso, shopping aos domingos, assistir à novela, depois jantar, somenta uma luz a iluminar a todos na mesa. Ainda tinha a sogra que ligava cinquenta vezes por dia e o cachorro que ele precisava levar pra passear. Ovos fritos, crianças, shopping, cachorro, sogra, decididamente isso não era vida, não era vida pra ele.

A rotina lhe causava náuseas, olheiras, barriga proeminente, que crescia, e crescia, de tanto que comia, ovos fritos, canja de galinha, feita com amor, e cerveja, cerveja todo fim de semana, pra anestesiar, pra esquecer o que poderia ter sido e não foi, pra desencorajar a vontade que minguava mas se mantia ali presente, vontade de voltar no tempo e fazer diferente, vontade de largar tudo e fazer a diferença, agora.

Mas não tinha coragem de fugir, ele tinha a chave, é verdade, mas ele estava ali de vigília para que não deixasse ele mesmo fugir. Sendo assim só lhe restava lavar o carro, era domingo e essa poderia ser uma ótima oportunidade de esquecer da sua vida, e de todo o resto... Um bom programa de domingo, lavar o carro enquanto a esposa toma chá com as amigas (mera desculpa pra fofocar) e as crianças jogam game na casa dos colegas vizinhos. Aliás, não sabem fazer outra coisa. E assim não deixava a solidão lhe fazer companhia, preferia a companhia do seu carro, ensopado, que ele secava, limpinho, brilhando, bonito, bacana.

Foi isso que ele fez da vida? Foi isso que a vida fez dele?

Mas ele sempre soube que aquela não era vida pra ele...

[Mente Hiperativa]

2 comentários:

  1. Adorei o texto!
    Realmente todos somos o algoz e o preso ao mesmo tempo.
    Continue escrevendo. Abraço!
    Francisco Dalsenter
    http://muitomaisquesonhos.zip.net/

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  2. Adorei o texto!
    Realmente todos somos o algoz e o preso ao mesmo tempo.
    Continue escrevendo. Abraço!
    Francisco Dalsenter
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