domingo, 17 de fevereiro de 2013

A bênção do mar



A bênção do mar
O dia havia sido bastante difícil, repleto de problemas e más-notícias. Sendo assim, tentei fazer algo que me trouxesse um pouco de prazer em meio a tantas mazelas, precisava arejar as idéias e amenizar a dureza da vida. Senti necessidade de me sintonizar com alguma fonte de energia positiva e nada melhor que o vento salgado do mar, sua imensidão azul, pra confortar e encher de paz a minha alma perturbada. Era fim de tarde, o sol se punha de modo que seus raios oblíquos cruzavam os prédios enormes enfileirados à beira-mar, permitindo a formação de uma cortina de luz a qual tocava levemente a areia fina da praia. Preguiçosamente ele se escondia ao mesmo tempo em que enchia o céu de tons amarelos e alaranjados, criando assim uma pintura impressionista que tornava meu passeio ainda mais relaxante.

Atravessei rapidamente a avenida que divide o paredão de prédios e a praia, sem qualquer cerimônia fui logo tirando os chinelos dos pés pra poder apreciar os farelos de areia entrando por entre os dedos, também queria sentir a textura dos sargaços roxos e verdes que morriam encharcados na areia formando verdadeiros tapetes naturais tão gostosos de pisar. Havia alguns poucos siris mortos no meio das algas, o que juntava muitas moscas daquelas bem miúdas que só se vê em praia mesmo. Saí tateando com os pés cada concha que surgia pelo caminho, também as pedras, tocos de madeira e restos de corais que as ondas resgatavam do fundo do mar, queria me apropriar de cada centímetro daquela praia como se estivesse fazendo uma leitura em braile com os pés. Caravelas minúsculas e aparentemente inofensivas repousavam na areia, mortas ou quase mortas; e cada vez que encontrava uma delas o meu dedão insistia em estourá-las dando-lhes um certeiro golpe de misericórdia.

Avistei muitas pessoas pelo caminho, algumas passeavam sozinhas refletindo sobre a vida, outros cantavam canções em baixo tom, corriam, ou apenas contemplavam o espetáculo da natureza que era aquela bela paisagem incrustada no meio urbano. Eram raras as moças de biquíni àquela hora, também vi alguns casais abraçados ou de mãos dadas, outros permaneciam sentados na areia namorando timidamente. Estes ao certo esperavam que o sol fosse embora de vez para que pudessem se esconder melhor dos olhares famintos e moralistas. Diversas crianças corriam sabe-se lá pra onde, serelepes que são. Nem mesmo elas sabem pra onde querem ir, mas ainda assim correm e correm. Havia uma menina chamada Cíntia cuja mãe gritava aflita pelo seu nome. Cíntia corria distante, usava um maiô cor-de-rosa da hello kitty, segurava pá e balde nas mãos, mas quando ouviu as súplicas da mãe logo desacelerou o passo enquanto soltava uma gargalhada gostosa de ouvir. Seus cabelos eram longos e cacheados, aloirados, e dançavam no vento como dançavam as folhas dos coqueiros. Cíntia parecia ter três anos e ainda muita vida pela frente.

A certa altura da praia parei um pouco pra admirar o mar, se fosse fumante certamente essa seria a hora de sacar um cigarro, mas como não sou, traguei mesmo a brisa marítima. Aproveitei pra jogar na lixeira alguns palitos, tampas e cacos de vidro que havia catado pelo caminho e guardado no bolso. Em seguida, sentei pouco mais adiante na areia fofa e alva pra contemplar o azul, queria mergulhar nas águas do mar, mas preferi avaliá-las antes. Além disso, percebi algumas pessoas em volta e tive um pouco de vergonha. Havia uma senhora sentada a alguns metros atrás de mim num barco qualquer encalhado na areia e parecia me observar. Ela usava um longo vestido estampado, tinha claras feições indígenas e mantinha-se de braços cruzados, não sei se sentia frio ou se era pura indiferença.

Logo depois que sentei chegou também um senhor e parou a certa distância, parecia turista, um “gringo” como chamam. Ele ostentava um olhar sério e expressão envelhecida, era calvo e suas bochechas estavam bastante avermelhadas. O gringo tirou a camisa e pôs à mostra sua enorme barriga proeminente que quase encobria a sunga azul-marinho que usava. Largando a roupa no chão ele caminhou vagarosamente em direção ao mar e aos poucos foi se perdendo em sua imensidão. Dentro d’água ele parecia sentir-se em casa, nadava e fazia estripulias como um golfinho, parecia se deliciar na água morna e azulada daquele marzão tropical. Aproveitei o embalo e criei coragem pra entrar na água também.

Tirei a roupa e fiquei apenas de sunga, dobrei a camisa e a bermuda com cuidado e coloquei tudo no chão, em cima do meu chinelo. Com cautela me aproximei do mar, tão vasto, e fui penetrando aos poucos em seu domínio imprevisível. Pensei nos tubarões que poderiam surgir, mas quando aparecem é somente na região mais profunda, por isso me restringi a ficar na parte rasa. Apesar de jamais ter tido contato com um tubarão tenho muito medo deles, sobretudo de suas bocarras repleta de dentes afiados e pontiagudos prontos pra dilacerar minha carne. A água não estava muito agitada, no entanto as ondas me derrubaram algumas vezes e aproveitei pra dar alguns mergulhos.

Por sorte, ou excesso de cautela, não tive nenhum infeliz encontro com tubarões. Ainda dentro d’água, de vez em quando eu olhava em direção à areia apenas pra constatar que minhas roupas continuavam lá, visto que seria trágico se me levassem e eu tivesse que ir pra casa apenas trajando uma sunga listrada. A senhora que parecia uma índia permanecia sentada no barco encalhado como se esperasse alguém. Talvez só pensasse na vida. Próximo a ela pude observar uma placa que continha os seguintes dizeres: Perigo - área sujeita a ataque de tubarão / Danger – bathers in this área are at a greater than average risk of shark attack. Por via das dúvidas, e depois de ler essa mensagem de alerta, preferi voltar correndo pra terra firme e segura.

Rapidamente eu deixei as águas e sentei-me no chão sob o pretexto de esperar que o vento me secasse. Enquanto me coçava um pouco por conta do sal eu notei um casal próximo que me observava. A moça me pareceu um pouco familiar, no entanto não consegui reconhecer exatamente quem era e como não falou comigo preferi ficar quieto na minha. O rapaz que a acompanhava, provavelmente seu namorado, não aparentava gostar dos meus olhares a soslaio, porém seu olhar junto ao da moça também me incomodava.

Não demorei muito, me enxuguei com a camisa e me vesti, não queria demorar ali e o sol já estava indo embora, era hora de voltar pra casa. Sendo assim, tomei o percurso de volta. Andei pela praia observando atentamente cada detalhe do caminho. Encontrei um peixe da espécie baiacu ‘perdido’ na areia. A água do mar ia e vinha, mas não conseguia levá-lo de volta. Ele parecia um pouco inchado e seus espinhos intimidavam um contato mais próximo. No entanto, me aventurei a pegá-lo com cuidado, ele inchou ainda mais e quase me espeto com seus espinhos. Joguei-o na água um pouco mais adiante, não teve jeito, ele parecia incapaz de nadar e logo as ondas o trouxeram para a beira novamente. Ele tinha uma cor cinzenta tingida de bolas amarelas bem reluzentes. Era muito bonito, tinha a respiração ofegante e acho que estava morrendo. Fui embora sem poder intervir no destino dele, não pude fazer como fiz com as caravelas, tive que deixá-lo morrer lentamente.

Segui meu caminho num passo lento de quem não quer chegar no destino de casa e encontrei muitos jovens jogavam bola na areia da praia como se não houvesse nada pra fazer, nem trabalho, nem estudo, nem filhos ou outras preocupações. Mas pensando bem eles também merecem algum lazer e certamente qualquer problema ou responsabilidade poderia esperar um pouco enquanto se divertiam naquele fim de tarde. É interessante observar como o futebol tem essa capacidade de ocupar a mente e trabalhar o corpo, permitindo que uma simples bola traga tanta felicidade e ocupação. Todos se divertiam em meio a gritos, gargalhadas e rápidas passadas de bola, alguns poucos assistiam a partida sentados na areia. Havia um deitado e visivelmente cansado, talvez pouco acostumado ao exercício físico; outros o acompanhavam, possivelmente aguardando a vez de entrarem na partida.

Prossegui adiante, sempre me guiando pelos prédios altos e tão diversos, avistados por detrás dos montes de areia. Estava próximo de casa e o sol já estava distante, tão distante que seus raios não mais formavam mais aquela cortina de luz sobre a areia. Os postes de iluminação pública já haviam se acendido e a lua já ocupava seu trono no céu, embora as estrelas ainda estivessem apagadas. No calçadão pude avistar o enorme fluxo de pessoas caminhando e fazendo cooper, algumas bebiam água de coco no quiosque e a vida parecia fluir naturalmente como todo fim de tarde.

Atravessei a avenida novamente, dessa vez de encontro à fila indiana de prédios que se amontoam diante do mar. Gosto de analisar a arquitetura de cada um observando suas peculiaridades: alto, baixo, largo, estreito, moderno, clássico, arrojado, prático... São inúmeros prédios construídos em tempos diferentes, atendendo às mais variadas exigências de mercado, porém todos com o mesmo atrativo principal: são de frente para o mar. E foi por isso, salvo engano, que vim morar nessa parte da cidade, por conta do mar. Cheguei em casa, toquei o interfone da portaria do meu prédio e entrei assim que o portão abriu. Dei uma última olhada para o mar e por um instante lembrei o dia ruim que tive, mas tentei fazer algo que me acalmasse a mente ao mesmo tempo me trouxesse algum prazer. Sempre procuro o mar pra pensar na vida, mas nesse dia em específico foi o oposto que me levou até ele. Queria esquecer da vida.

[Mente Hiperativa]

7 comentários:

  1. Que texto delicioso de ler!!!
    Adoro esse cuidado que você tem em descrever com detalhes as situações. O mar também é um refugiu pra mim .. acalma, conforta, faz pensar em tudo,e as vezes em nada mais que sua imensidão.

    Mi

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  2. Tua narração, sinceridade e conquista de paz a cada desejo puro em busca dela faz dos teus textos ricos para quem lê, meu irmão.

    Não consigo imaginar o que te faça ficar triste, porque pelo pouco que te conheço, conheces garantir sorriso e presença a quem encontras. Mas fico feliz que em meio às adversidades, tua alma busca na contemplação melhoras.

    Excelente. Obrigado pelo passeio.
    F.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Excelente texto. Quanta riqueza de detalhes, digna de um literato :)

      Parabéns!

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  4. E esse texto é um mar rio em detalhes. (De novo aquela coisa de detalhes e cores e, continue com isso, por favor continue, senhor).

    O mar é só mais um dos postos de recarga de energia que a mãe natureza nos deu. Entregar-se de corpo e alma para o espumar do mar, para o deslize da areia, pro arranhar das rochas e para a dança da brisa... é ligar ao interruptor da paz interior e astral. Como se renovar, esquecer um pouco da vida, curar-se mentalmente. Tudo isso. Mãe natureza faz bem o papel de mãe, por nós.

    E esse é auto-declarado o melhor texto do MH? R: SIM!
    Parabéns.

    Abraço forte.

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    1. Corrigindo: Mar rico em detalhes.
      (Porque "mar rio" foi bem mind blowing).

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    2. Melhor eh? Hehe, vlw pelos elogios
      Abração

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