quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O mendigo, a sociedade e o processo de desumanização



O mendigo, a sociedade e o processo de desumanização

Vestia roupas sujas e maltrapilhas que lhe conferiam uma camuflagem de causar inveja até ao exército Americano, confundia-se facilmente com a calçada, com os muros e qualquer outro tipo de edificação própria da selva de pedra. Sua capacidade de se misturar à paisagem era tão grande que causava a impressão de ser parte do cenário, uma espécie de objeto colocado sobre o chão, encostado num poste ou esquecido à beira de uma lixeira. Quem passava pela calçada não se incomodava com a sua presença, a maioria sequer o notava ali, imóvel e silencioso. Ainda assim, os poucos que o percebiam desviavam o caminho e faziam pouco caso com seu estado mórbido e miserável.

Aquele cidadão carecia de saúde e isso ficava evidente ao observá-lo com atenção. Ostentava uma aparência nada apreciável, sujo e desleixado, usava ainda uma barba espessa e acinzentada que diante do escurecer típico do fim de tarde poderia ser facilmente confundida com um arbusto. Mas apesar do estilo despojado, ele não era hippie, tampouco adepto de uma nova corrente de moda alternativa ou estilo transgressor, apenas perdera qualquer interesse no que diz respeito ao auto-cuidado; e pensando bem, quem chega ao estágio em que ele se encontra não deve se preocupar se sua barba parece um arbusto selvagem. Viveu tantos anos marginalizado nas ruas que foi progressivamente se entregando a um estado de total apatia e falta de amor-próprio, não se preocupava mais com a limpeza e higiene, perdera a vaidade e qualquer tipo de preocupação com o que os outros podiam pensar a seu respeito. Afinal o que ele representava para os outros? Absolutamente nada! A cada dia ficava mais claro que havia sido incorporado à paisagem local, aos olhos da sociedade deixara de ser gente pra se transformar numa coisa qualquer, inválida. Sendo assim, porque deveria se preocupar com o que poderiam pensar a seu respeito? Sentia-se invisível diante das pessoas, e talvez realmente fosse.

Diante desse processo de coisificação da pessoa, aliado à total falta de perspectiva, o pobre senhor se mantinha sentado no chão, estático, como um monte de lixo aguardando o caminhão passar e os garis o recolherem. Olhei pra ele por alguns segundos e foi o suficiente pra constatar sua situação de pleno abandono, sendo bastante triste perceber que uma pessoa tenha sido relegada a esse estágio, igualada a lixo. Rapidamente constatei que ninguém sequer o olhava, não tinha valor algum, nem parecia ser humano como nós; apenas alguns transeuntes o percebiam devido ao seu cheiro forte e desagradável, que lhes causava asco e incômodo. Notei que seus olhos não se mexiam, pareciam fixos em algum ponto do infinito, seus membros também não esboçavam qualquer movimento, jazia ali na calçada como um corpo sem vida. Talvez ele tenha sangue correndo nas veias, talvez seu pulmão se encha e se esvazie de ar várias vezes por minuto, mas será que isso é o suficiente pra garantir que esteja vivo?

Aproximei-me dele com receio e cumprimentei-o com um boa noite. Diante de seu silêncio eu repeti o "boa noite", ele apenas mexeu os olhos, mas manteve a boca cerrada. Depois perguntei se tinha fome, ofereci um lanche, ele me ignorou completamente. Talvez estivesse achando estranho alguém falar com ele, não parecia ser algo corriqueiro. Além disso, provavelmente ele se encontrava desiludido com toda a espécie humana, e não lhe tiro a razão quanto a isso; mas também é possível que estivesse com algum problema neurológico secundário à desnutrição e carência de nutrientes. Ele não demonstrava qualquer interesse em interagir comigo, tentei estabelecer algum tipo de comunicação, mas foi em vão. Em seguida, procurei um lugar próximo pra comprar comida, mas não havia. Fui embora com remorso por não ter ajudado aquele pobre senhor de rua, recordei as vezes que ajudei tantos outros. Fiquei pensando na sua situação em específico e desconfio que a sociedade obteve êxito em sua coisificação, tornaram-no parte da paisagem, um mero objeto sem função ou valor. Receio que o pobre senhor infelizmente tenha acreditado nisso e tomado como verdade, integrando-se ao ambiente e rendendo-se ao processo de desumanização.

[Mente Hiperativa]

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